quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Joana cigana (Agostinho Fortes)

Acorda Joana
Que já é dia
Vem cá pra fora
Ver tanta alegria

A sua beleza
Agita os olhos
Os mares, os copos
Derrama o vinho

Passeia Joana
À beira-mar
Molhando os pés
Desfaz seu caminho

Se pinta Joana
Que já é noite
E a noite é só luzes
E a lua lhe quer

Voa Joana
Que ninguém alcança
Mas todos desejam
Joana mulher

Ás vezes eu fico
A ver navios
Sem ver Joana
Mais de uma semana

Volta Joana
Volta Joana
Pro sol levantar
E a noite cair

Não sei por que
Joana não ri
Por quem ela chora
Por que é tão só

Mas se ela um dia
Olhasse pra mim
Veria que eu
Também sou só assim

Some Joana
Num brejo sombrio
Num sopro de vento
Na queda de um rio

Joana cigana
Não é de ninguém
É só dos poetas
E minha também

quarta-feira, 18 de março de 2015

Palácio de lona (Agostinho Fortes)


Poesia, magia, alegria e acrobatas pelo ar
Um dia naquela cidade eu vi
Essa trupe chegar
Mambembe, que loucos
E que foram aos poucos
Erguendo
Um palácio de lona
Tremendo

Quem diria um dia a alegria acampasse por aqui
Mesmo o velho ranzinza com seu terno cinza
Pediu pra repetir
O canto dos loucos
Que foram aos poucos
Erguendo
Um palco de sonhos
Tremendo

A moça feia que só se escondia e vivia a chorar
Ouvindo falar dos bandidos vadios
Apareceu por lá
Mambembe fugido
Fera e rugido
Sedento
E o sangue das virgens
Fervendo

A mal falada e mais desejada pelos homens de lá
Ao ver o palhaço aprontando, caindo de bunda
Resolveu se casar
No picadeiro
Ao som de um pandeiro
Bebendo
Era a noiva mais séria
Do elenco

E a cotovia, que eu nunca via, veio sobrevoar
O sério prefeito, mesmo sem jeito
Se pôs a dançar
E toda gente sofrida
Que apanha da vida
Sorrindo
A meninada assanhada
Curtindo

O rico e o pobre juntaram seus cobres pro circo ficar
Mas todos sabem que todo artista
Tem que se espalhar
Trupe fugida
Na estrada perdida
Sem lona
Sem plateia, pedindo
Carona

domingo, 1 de março de 2015

As duas (Agostinho Fortes)


Se uma só quis beijar
A outra se guardou pura
E condenou com o olhar
Qualquer loucura

Se uma perdeu a conta
A outra foi mais precisa
Sonhou sempre em se casar
Antes dos trinta

Se uma foi com os bandidos
Pelas ruas da agonia
A outra quis seu herói
Na fantasia

Enquanto uma se deu toda
E seu dorso se contorcia
A outra se recolheu
Pra um novo dia

E se as duas vão se cruzar
Cada olhar vai reconhecer
Na tristeza do outro olhar
O seu sofrer

E se uma quiser chorar
O vazio que foi uma vida
Pode preencher o da outra
Nunca vivida

Hoje uma ainda sonha
Espera o amor da vida
A outra não tem vergonha
E gosta de margarita

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

A mulher do mar (Agostinho Fortes)


Ela tem um coração que achou no chão
E tem um sorriso que tomou de Deus
Tira o mar pra dançar imaginando uma canção
E deixa na areia pés que não são seus

Dizem que a senhora já enlouqueceu
Mas que foi bela, rica, louca e muito amou
No seu mundo da lua, ri do que lhe aconteceu
E olha pro céu como quem por lá se achou

A cidade corre e some na fumaça
E só ela parece ver alguma graça
Toda gente apressada passa e é infeliz
Será que só ela tem a vida que sempre quis?

A mulher do mar vagueia
A mulher do mar
Quem não viu, vai lá na areia
Que ela é de voltar