quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Esquecido (Agostinho Fortes)

Hoje acordei e de nada pude me lembrar
Que dia era e também em qual lugar
Desci à rua e fui valente passear
Sem vigia, sem remédio e sem tédio a cantar

Mas as esquinas estavam fora de lugar
Fui ao cinema ler um livro e dormi
Na livraria vi um filme de chorar
Lembrou alguém, algum amor que eu esqueci

Fui atrás de um vira-lata desgraçado
Desses que sabem exato aonde querem chegar
E de repente com meus olhos tão cansados
Embaçados, malcriados, dei de cara com o mar

Fui mergulhar sem lembrar se sabia nadar
Mas tudo bem, pois me esqueci de me afogar
Parei no quiosque pra poder me refazer
A minha pele a derreter, perante o sol, perante o mar

Agora quero o meu amor visitar
Será preciso viajar pra outro país?
Será que mora bem juntinho o meu par?
Será um lar, pra gente amar e cozinhar e ser feliz?

E o meu filho por onde andará?
Se já nasceu, se já morreu, se vai casar
Será mesmo esse filho, filho meu?
Será de Deus, algum ateu, e como eu, alguém sem lar?

Uma moça de branco diz que veio me buscar
Não é minha noiva, vai ter que se identificar
Parece ciumenta e cheia de blá blá blá
E blá, blá, blá e blá, blá, blá, ela diz ser minha babá

Mas essa noite minha amada vai chegar
Promessa que ela me fez em algum altar
"Antes que a morte nos separe eu vou voltar"
"Hei de voltar" e blá blá blá, mais um calmante pra apagar

Vem (Agostinho Fortes)

Eu lhe dei rosas e belos vestidos
Fiz poesia falando da gente
Fiz um disco para os seus ouvidos
Dei uma camisola transparente

Vem, vem, vem, vem

Murcharam as rosas, arranhou o disco
Você não quer ouvir falar da gente
E diz que eu sou um cara de alto risco
Que levo uma vida indecente

Larguei bilhar e o carteado
E a mulata que mora em frente
Por uma vida pra sempre ao seu lado
Prometo nunca mais ficar contente

Vem, vem, vem, vem

Mas vem logo que a vida passa
Impiedosa ela arrasa a gente
Enquanto no peito bater um samba
Eu sei que posso lhe fazer contente

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Estrela (Agostinho Fortes)

Quando a vejo na televisão
O meu coração se inflama
Parece que ela me chama

Atento à cena, não perco o momento
Nenhum movimento da dama
Prevejo a sua trama

Ela é só minha na minha ideia
E no coração
Não sei por que ela encena
Ser da multidão

Beija o galã como se eu não estivesse
Tomando conta da novela
Me trai sem me dar trela

Me encara e tira o vestido
Esboça um sorriso e me leva a paz
Pra ir com um outro rapaz

Ela é famosa, é estrela
Ela é demais
Será que ela me vê
Vendo tudo que ela faz?

Às vezes é má, às vezes megera
Às vezes até exagera
E mata um personagem

Faz mil caras e bocas, tem mil corações
Finge a voz quando canta
E meus males espanta

Ela me inferniza, me atiça
E não tá nem aí
Ela me tira a saúde
E parte pra Hollywood
Enfim

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Você me merece (Agostinho Fortes)

Você sabe cuspir
No prato que você
Se lambuza

Você briga comigo
Mas ri pro meu umbigo
E abusa

Sou mulher sem palavra
E a sua palavra
Eu contesto

Eu também não presto
E é por isso que eu
Te detesto

Vem e me tira a blusa
Me trai e me acusa
Que eu atesto

Esse amor sem vergonha
Que nem miserável sonha
Me aquece

Quando rezo, eu misturo
Meus pecados e os seus
Numa prece

Sou igualzinha a você
E por isso você
Me merece




quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Pobre Maria (Agostinho Fortes)

Pobre Maria que perdeu seu rumo
Seus sonhos e seu prumo
Quando enfim perdeu João
Pra uma outra Maria
Que agora dona da alegria
Explode de paixão

A alegria assim corria
De moça em moça escorria
De boca em boca sem parar
João transferia seu amor
E deixava uma dor
Pra outra se lembrar

João é qual um cirurgião
De delicadas mãos
Que com calma e fundo
Toca manso um coração
Arrancando a veia então
Do lugar mais profundo

João é qual um peão
Bravio de brutas mãos
Quando uma alma laça
Num só golpe exorciza,
Liberta e escraviza
Multiplicando a sua raça

João prometeu tantos mundos
Com seu coração sem fundos
E sua lábia de ladrão
Por onde agora anda João?
Pois nem mais no sonho de Maria
A gente vê mais não