terça-feira, 28 de março de 2017

Memória (Agostinho Fortes)

Teu corpo todo esfacelado
Nos cantos, no quarto
A tua dura carne em nacos
Nas bocas, nos pratos
Minha memória castigando o coração

O teu pavor e desespero
Nas noites, nos becos
A tua língua com tempero
Nos beijos mais secos
Minha memória provocando um turbilhão

A tua pele esticada
Curtida, na estrada
No varal e no tapete
Do hall de entrada
Minha memória pisa assim no coração

Teu céu da boca no telhado
Nos vinhos, nos copos
Teu desejo espalhado
Nas pias, nos colos
Minha memória sacudindo o coração

O teu olhar em cada cara
Vidrado, insano
No quarto ao lado da outra casa
Teu grito profano
Tua memória castra enfim meu coração

segunda-feira, 27 de março de 2017

Teu norte (Agostinho Fortes)

Menina, quero ser teu norte
Menina, quero ser teu par
Eu sei que é como a morte
Ver um amor acabar
Tu andas tão desiludida
Sentida de tanto amar
De seres abandonada
E também de abandonar

Por isso eu te abro um corte
Pro coração poder passar
E sempre que ele bater forte
Ao meu vir se juntar

Menina, pega a minha mão
Que eu sei que posso te levar
Por campos ensolarados
E caminhos à beira-mar
Tu andas desconsolada
Do amor queres descansar
De tanto seres enganada
E também de enganar

Por isso, eu te faço um barco
Pro teu coração navegar
E sempre que ele bater fraco
O meu vai agitar o mar

Por isso eu te abro um corte
Pro coração poder parar
Quando for chegada a morte
E ao meu vir se juntar

quarta-feira, 22 de março de 2017

A coisa é séria (Agostinho Fortes)

Tropeça, canta, brinca e rodopia
Distribui seu alto astral
Perdeu o juízo, perdeu família
Mas nada faz tão mal

Perdeu dinheiro, achou uma panela
O almoço vai ser bom
Acende vela
Reza cantando
E nunca perde o tom

Bagunça, samba, bebe e cambaleia
Faz o seu carnaval
Perdeu a casa, perdeu vergonha
Dorme sobre o jornal

Perdeu memória, achou uma cadela
Que a segue aonde for
Quem passa e olha
Só vê miséria
Não enxerga a flor

A coisa é séria
Lá dentro dela
Tem a mais linda flor

A coisa é séria
A flor mais bela
A vida lhe plantou

terça-feira, 21 de março de 2017

Fiz a sua mala - 2ª versão (Agostinho Fortes)

Como era de costume, fiz a sua mala
Não repare no volume, não repare em nada
Nem em toda a minha dor estampada na cara
Se a gente fica cara a cara é pior que nada

Fiz caber no velho couro o seu grande reinado
Acredite, dessa vez está tudo acabado
Carregue as suas costas frias e lanhadas
Pelas mãos das boas moças que não valem nada

Leve seus beijos frouxos e de caridade
Meus dias infelizes, sua crueldade
Mas deixe o que restou da minha vaidade
Que de tanto maltratada esvaiu-se em lágrimas

Deixe o que restou da minha sanidade
Que de tanto perturbada vive a dar risada
E as nossas palavras de amor e dor
Não está mais aqui quem falou e chorou

Aquela esperança de você mudar
Aquele perdão disposto a perdoar
Aquela vontade de lhe consertar
Já não andam por aqui nesse resto de lar

Amanhã serei a dona da minha vontade
Sairei nua e feliz por toda a cidade
Vou me vingar assim em outro amor qualquer
Imaginar você em outro que me quer

Vou seguir dilacerando corações alheios
Mostrando felicidade, insinuando os seios
E vou seguir te amando como Deus quiser
Ou como o diabo gosta e como eu puder

quinta-feira, 16 de março de 2017

Samba arretado (Agostinho Fortes)

Hoje meu violão tá diferente
Eu fiz um samba muito arretado
E aquela morena indiferente
Vai se curvar, vai ser bem engraçado

Hoje eu rodo a roda de samba
Alguém vai acabar bem enjoado
E a cabrocha que se diz a bamba
Hoje não vai mais me olhar de lado

Meu samba hoje traz a maré cheia
Muita holandesa e um beijo importado
Vai perturbar uma paixão alheia
Deixar algum marido chateado

Da bateria ela é a rainha
Mas hoje vai me pedir um trocado
Pois a morena hoje quer ser minha
Gamou no meu refrão que é um pecado

Hoje meu violão tá diferente
Meu samba hoje tá um esculacho
Quem for careta e não for pra frente
Só de ouvir também vai ser culpado

terça-feira, 14 de março de 2017

Vida boa (Agostinho Fortes)

Ela diz que é sem nome
Sem filhos, mãe, sorte e lugar
Mal sabe o que é compromisso
Perde a hora de chegar
Seu ganha-pão é a fantasia
Do amor que ela não tem pra dar
Às vezes se sente vazia
Mas já vai trocando de par

Que vida boa
Vive sempre à toa
Seu sorriso ecoa se ela faturar

Anda cansada dessa vida
A vida que custa a passar
Cansada de gente ferida
E de gente que quer machucar
Seu corpo anda esmorecido
Mas não deixa o copo esvaziar
Seus seios engasgam maridos
Daquelas que estão a chorar

Que vida dura
Será que ela dura?
Será que tem cura esse seu penar?

E a vida passa
Ela quer outra taça
Faz mais uma graça enquanto não passar

segunda-feira, 13 de março de 2017

Olhos azuis (Agostinho Fortes)

Ela não tinha luz nos seus olhos azuis
Imaginava o sol, falava com Jesus
Na sua escuridão pintava um jardim
Mas sempre me dizia ter olhos só pra mim
Prometeu comigo um dia se casar
Se Deus lhe devolvesse o luar

Seus olhos sempre mirando o infinito
Nunca vi olhar igual, nem assim tão bonito
Certa manhã, a luz, o primeiro dia
Um par de olhos loucos brilhando em agonia
A primeira fresta, a primeira cor
Tinha dia de sobra e as formas que imaginou

Seus olhos marejados já podiam ver
A casa, o jardim e as coisas na tevê
Mas ela ao me ver, não gostou do que viu
Eu era seu espelho, espelho que partiu
Perdi os olhos meus que nem eram azuis
Ela ganhou os dela e eu levei a cruz

Ela não quis mais casar, pediu perdão a Deus
Ela queria o mundo dentro dos olhos seus
Com coração partido, eu tinha que partir
Eu tinha que chorar, eu tinha que fugir
Deixe-lhe um bilhete dando o meu adeus
"Amor da minha vida, cuide bem dos olhos meus"

quarta-feira, 8 de março de 2017

Hoje é dia dela (Agostinho Fortes)

Hoje é dia dela
Dia mais feliz
Subi uma torre
Enfrentei dragões
Pra entregar as flores
Que ela sempre quis
Hoje é um dia tão feliz

Deus, olha só
Perdoa o que eu fiz
Bebi nas tabernas
Tropecei nas pernas
E dei uma flor
Pra cada meretriz
Hoje quem sabe alguma delas foi feliz

Hoje é dia dela
E olha o que é que eu fiz
Trouxe minha coroa
Fortuna e país
Mesmo ouvindo dela
Que ela nunca quis
Hoje é um dia tão feliz

Hoje é dia dela
E olha o que é que eu fiz
Entreguei de bandeja
O meu coração
E fiz jorrar meu sangue
Em seu chafariz
Será que faço ela assim feliz?

Hoje é dia delas
E olha o que é que eu fiz
Trouxe o veneno
O amor eterno
E o abraço fraterno
Que ela sempre quis
Hoje é um dia tão feliz

Hoje é dia delas
Vim dar os parabéns
São mil primaveras
Invadindo janelas
Seu rosto pintado
Em mil aquarelas
Hoje é um dia tão feliz

Eu vim de uma delas
Naturalmente
Ou no seu ventre
Bem levemente
Deixei uma dor
E uma cicatriz
Quem sabe ali foi o seu dia mais feliz?

sábado, 4 de março de 2017

Os nossos anos (Agostinho Fortes)

Mulher,
Quero acalmar teu pranto
Relembrando o tempo, todos os nossos anos
Relembrando os dias, dia a dia, nossa dor
Nossa lida, nossa alegria e nossos enganos

Mulher,
Quero juntar-me ao teu pranto
Chorar as palavras com as quais nos cortamos
Chorar o perdão, que dia a dia, nos redime
Nossas noites em silêncio, dias sem encantos

Mulher,
Quero te dar a rosa da calma
Que brotou das cinzas, fruto das idas e vindas
Que brotou desse amor, que hoje inda choramos
E que cheira a ternura, a louvor e recolhe os anos

Meu amor,
Deixa-me enxugar nosso pranto
Pois o que choras é só o espanto
Ao perceber o tamanho desse amor
Desse amor que vem a tempo de um tempo mais brando

sexta-feira, 3 de março de 2017

Eu quero mais (Agostinho Fortes)

Vida
Eu quero mais da vida, quero além da vida
Entrar por todos os umbrais
Arrombar saídas
Vasculhar o caos, a dor
O dedo na ferida

Vida
Mesmo contra o mar e toda a ventania
Estufa a vela, aperta o peito
Desatada sangria
Chegar, amar, partir
Tudo num mesmo dia

Vida,
Mesmo queimando a pele em carne viva
Beber as labaredas
Cuspir fantasias
Rodar, rodar, cair
Na mais profunda fenda da alegria

Vida,
Quero subir bem mais que o mais arrogante alpinista
Eu quero a queda em queda livre
E que meu bem assista
O susto, o tombo, o grito
Todo o risco dessa vida

quinta-feira, 2 de março de 2017

O grande amor (Agostinho Fortes)

Ô menino, me conta um segredo
Como se faz pra encontrar o grande amor
Aprendo tricô, durmo e acordo cedo
Ou saio em devaneio cheirando a flor?

Ô menino, explica o grande amor
Se é inquietação e falta de ar
Ou é dormir na paz do Nosso Senhor
Como se nunca mais fosse acordar?

Explica como termina o grande amor
É um coração definhando o ano inteiro
Ou será feito um rolo compressor
Avançando sobre o jardim ligeiro?

Me diz, me diz
Se o amor é desengano
Fim de festa, fim de ano
Se o amor sempre é fugaz
Vi o grande amor num filme
Mas já saiu de cartaz

quarta-feira, 1 de março de 2017

Joana da janela (Agostinho Fortes)

Pedro construía barcos,
Mas tinha medo do mar
Lia plantava as suas flores
Para Ana arrancar
Dora adorava chuva
E evitava se molhar

Carlos sonhava com fama
Cinema, Leblon, dinheiro
Mas tinha medo da cidade
E rezava o dia inteiro
Léo planejava aventuras
Mas temia o nevoeiro

E a Joana da janela
Que se sonhava casada
Paralisada à espera
De um amor que imaginava
Nunca mais abriu a porta
Nem quis ouvir serenata

Pedro já caiu no mar
Lia colheu suas flores
Dora pegou um resfriado
Carlos canta seus cantores
Léo cruzou os sete mares
Joana ficou sozinha
Joana e suas dores
A Joana e sua vidinha
Nunca mais ousou amores
Joana, tão bonitinha