quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Meu bairro

Aqui no meu bairro tem floresta
Papagaio fazendo festa
Vista pro Redentor

Tem macaco na reserva
Uma praça, uma taberna
Muita prosa e muita flor

Aqui não há quase saudade
Mas se dele saio, é verdade
Que logo vem a dor

Meu bairro é beijado pelas ondas
Por meros tiros proibidos
Por beijos de amor

Meu bairro é tanto água como fogo
É de quase tudo um pouco
É louco e tem ardor

É na retina um belo soco
E tem sempre água de coco
Pra sede de amor

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Paz

Prefiro igrejas vazias às liturgias
Prefiro o cantar dos pássaros ao escarcéu
Prefiro os acordes das ventanias
Prefiro o apagar das luzes ao fogaréu

Gosto do violão ao relento,
Do cheiro de café e de serra
Prefiro a rosa ao cimento
Escapo do asfalto pela estrada de terra

Prefiro a ausência da dor,
Dos olhos das multidões
Por isso vivo e morro só
Com todos os meus corações

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Andarilha

Caminho sozinha
Com olhos de menina
Olhando medito
E dobro a esquina
E não acredito
Quando desconheço a vizinhança
Será minha rua, Berlim, Japão ou França?
 
Olho a paisagem
Tal qual a vez primeira
É linda a viagem
É clara, passageira
Não é preciso ir longe
Pra rodar o mundo e o coração
Pelas ruas vizinhas vou ao Cazaquistão
 
Com olhos bandidos
Roubo rosas, edifícios
Nunca vi minha rua
Mas sinto já ter visto
Meu peito se abre
Deixando entrar Veneza ou Portugal
Caminhar tão alegre faz qualquer canto igual

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Primavera

Ela é o sol que chega ardendo como se fosse o verão
Trazendo assim a primavera, arrebata olhares
E vai deixando distraída mais de mil flores no salão
Dançando como a primavera, agita os pares
 
Quem é essa etérea moça que vem trazendo tanto amor?
Na dança de salão, na festa, ela é tempestade
Deixa uma flor pra cada par e uma outra pro cantor
Mais uma para o dançarino que já tem idade
 
De repente parte violenta como águas de uma corredeira
Largando tudo frio e quieto, gela o meu caminho
Pra quem da vida nada espera, deixa uma flor, a derradeira
Chegou ao fim a primavera e eu aqui sozinho

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Lúgubre madrugada

O tempo passava agônico e se arrastando
O casarão, irônico, me era pequeno e murmurava ruídos
A sala era erma e lúgubre e tudo nela estava faltando
A madrugada estava gélida e muitos raios eram atraídos
 
A lareira inquieta não se abalava com a minha quietude
O fogo soberano subjugava meu medo com seus estalos, sombras e clarões
Eu via no fogo a brasa da minha já vivida juventude
E vez ou outra voltava a ouvir murmúrios do porão e rangidos dos portões
 
O vento distraía-me assobiando sonolento e conversando comigo
Agourento, de súbito, entreabriu a janela adentrando curioso e alvoroçado
As cortinas arfavam, também distraindo-me como faria um amigo
E me veio juntar-se ao medo a culpa por não ter do meu amor cuidado
 
Ouvi uma voz que me perturbou e que por vezes ainda me invade
Mais um vulto, mais um raio, mais murmúrios e até um grito
E o medo de todos os fantasmas do mundo converteu-se em saudade
Talvez o que me assombrava fosse apenas um saudoso espírito
 
Ouço a tua doce voz cheia de intenções
Amor, onde estás? Andas por nossas terras, Beatriz?
Estou cansado de só tê-la em minhas orações
Eu só quero paz, temo as guerras, nunca mais fui feliz!
 
No afã de fazer-te feliz, me descuidei
No dia em que um vento gelado gelou teus delicados pulmões
Dançávamos joviais sob a chuva e nada reparei
Já é de manhã, vou dormir
Perdoa-me, amor, pelas decepções

domingo, 20 de outubro de 2024

A cidade que chora

Eu vi a cidade chorando, chovendo
Eu vi um menino caído na ladeira do morro
Eu vi as mazelas de perto
Andei nas vielas, favelas
E senti a fome de uma gente que não pede socorro

Por isso eu choro
Mas meu pranto é fugaz
Por isso esse pranto à toa
Às vezes eu canto pra aliviar
Às vezes eu choro, eu canto, eu paro

Eu vi a cidade chorando, morrendo
Eu vi uma moça carregando o seu rebento
Ouvi um tiro tão perto
Vi aquele corpo sedento no chão
Eu vi a cidade sorrindo e um pai de joelhos em oração

Por isso eu choro
E meu pranto é assaz
Porém ele não ecoa
Às vezes eu canto pra me enganar
Às vezes eu choro, eu brado e canto

O teu cheiro

Hoje eu vou pescar lá na pedra do porto
A lida da semana foi corrida
Estou cambaleando e quase morto
Prometo, meu bem, que eu volto quase outro

Uma tainha, um robalo
Um peroá, um linguado
Vou trazer-te o mar inteiro
O céu e um pouco de sal
Quero sentir o teu cheiro
Hoje eu quero o carnaval

Vou entrar no mar, pescar com disciplina
Quem sabe eu pesco o nosso almoço
Ou trago ao menos um bom tira gosto
Faz aquele tempero que a todos fascina

Uma corvina, um espada
Um atum, uma pescada
Quero sentir o teu cheiro
Misturado com sal
Quero um domingo maneiro
Domingo de carnaval

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Um sonho em brasa

Sonhei com um pesadelo de assustar
Até quem estava por lá
Puxa uma cadeira e pode sentar
Pois preciso te contar

Estive no inferno a girar
E vi monstros surgindo do mar
Brotando entre ondas em chamas
E pra esse mar corriam rios de lama

Vi o dono dali, o tinhoso danado
E a mulher que me traiu ali ao seu lado
Vi o sorriso falso de gente que nunca sorriu
Vaidades e egos vindos daquela gente de peito vazio

Estive no inferno a sorrir
E vi um céu escuro onde não havia estrelas
Então pendurei algumas à minha maneira
E pela terra árida sem flores, soltei algumas borboletas

Estive no inferno
E acordei a sorrir
Foi um sonho eterno 
Que quis meu coração partir

domingo, 6 de outubro de 2024

Descobre-te

Vai sem prever teu destino
Vai desbravando o teu ser
Vai por um bosque faminto
Pela rua deserta
Se autoconhecer

Vai pelo mar mais sombrio
Vai bebendo a tempestade
Vai sucumbindo ao frio
E ouvindo o assobio
Do vento da verdade

Corre pelo teu paraíso
Vai, cheira alguma flor
Vai, escancara um sorriso
Ao som de um violino
Reconstrói teu amor

Chegas de onde nem imaginas
Antes que houvesses partido
Chegas e és tantas meninas
Teu sangue nos fascina
E é subversivo

Chegas sem saber em que cena
Chegas para ao palco subir
Diante da plateia pequena
Mostras que vale a pena
Se encontrar por aí

E quando fecham as cortinas
Sei que há mil meninas
Que hoje brincam em ti
Fazendo um alvoroço
Às vezes até quebram-te o pescoço
Te dando uma paz
Deixando-te partir

Saudação

Salve a poesia
Salvem este mundo
Salve o amor
Salve a beleza que cabe na flor

Salve o dia
Salve o sonho
Salve o amor que eu proponho
Salve a vida
Salvem a floresta
Salve a alegria, que a dor não presta

Salve as palavras
Que nem são minhas
Salve, enfim, a poesia
A beleza, a floresta, o amor
O sonho, a alegria, o dia e a flor

Salve tudo o que nos resta
Salve a vida até o fim da festa
Salve tudo que nos presta
Salve também o fim da festa

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Lembranças

E por lembrar meu passado
Essas casas antigas, um móvel antiquado
Me trazem a alegria daquela criança
Numa roda de dança numa rua qualquer

E por me lembrar de você
Quero tanto lhe rever
Revisitar nossos lugares
Aqueles em que éramos
O mais belo dos pares
E o mais feliz
Bom me lembrar de você

E por falar em esquecimento
Esqueci o sofrimento que já vivi
As besteiras infindas que já perdi
Hoje só agradeço
E às vezes me esqueço se já agradeci

Grito adiado e abafado

Por ora silenciarei qualquer desejo tolo de me alegrar
Recolherei-me ao quarto bem mais cedo do que sempre costumo deitar

Adiarei meus devaneios e meus gritos loucos eu não vou gritar
E em cada prece minha, hei de recolher a fé que nunca esteve lá

Mas quando for chegada a hora, bem perto de ti, eu ousarei chegar
E o peso de toda a lida, lançarei no verde claro de algum mar

E aquele grito adiado e abafado, com descuido, há de se espalhar
E a cidade comovida escutando acordará pra vida e a mim se juntará

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Mais uma ode ao Rio

Fui dar um passeio legal
Um devaneio bem alto astral
Encontrei uns amigos
Falamos muito mal do Cabral
E de alguns inimigos

Foi um passeio legal
Maldizemos os tempos modernos
Rolaram alguns debates eternos
Desconversamos e tal
E criticaram meu terno

Rememoramos os velhos tempos
Quando havia muitos talentos
Cada um se gabou do seu rebento
Desconversamos e tal
Então dei prosseguimento

Cheguei ao Arpoador
Aquela pedra tem princípios
De lá olhei pros edifícios
E o meu Rio ainda é muito legal
Mistura amor com sacrifícios

É hora de voltar à casa
O tempo sem pestanejar sempre passa
E eu passo por alguma praça
Como é tão lindo esse Rio
Faça calor ou um pouco de frio

Voltar à casa
Andar no Rio é uma doce dor
Cai exuberante de açoite
Nos surpreendendo, a noite
Vou orar pro Nosso Senhor
Pra proteger meu Rio
Dormir sob os braços do Redentor
Essa noite tá fazendo um frio
Boa noite, amor
Vê se não puxa o meu cobertor

Astronauta

O que vê o astronauta
Ao ver a terra girar veloz?
Entende que não há diferença
Nenhuma entre nós

Territórios se mesclam
Onde estão as fronteiras?
Daqui de cima
Tanta coisa é besteira

Tantas festas e um só sorriso
Tantas frestas e um só olhar
A boca de quem não come
É a mesma do caviar

E girando veloz
A terra faz uma sutura
Cicatrizando distâncias
Aglutinando culturas

E a visão do astronauta
Por fim já tão louca
Enfim já tão parca e rouca
Vê uma coisa só
Será que ele volta
Ou se entrega as estrelas
Gentilmente em pó