segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Iara (Agostinho Fortes)


Foi um quebranto, mandinga ou encanto
Que me acometeu
Eu na beira do rio e ela sorriu
Era só ela e eu

Deu-me a boca, beijou-me louca
E desapareceu
Passei a ver e só eu que via
Gente que já morreu

Vi criaturas, fogo nas alturas
Ao lado de um serafim
Jurupari entrou no meu sonho
E o sonho não tinha fim

Vi Iara espalhando seu mais lindo canto
Seu chamado sedutor
Vi, em seus braços, pobre e feliz
Um jovem pescador

Naquelas águas, na calmaria
Vi morte e amor
Mula sem cabeça, antes que eu me esqueça
E a Cuca me pegou

Matita Perê, sei, ninguém vai crer
Mas ouvi assobiar
Numa rajada de vento na cara
Saci sabe assustar

Sumiu meu fumo, sumiu a pinga
Até mesmo o meu alento
Vi as pegadas de Curupira
Sumindo mata adentro

Boitatá me cegou, nem vi, me queimou
E o boto rosa a dançar
Deixou as raparigas cheias de barriga
Roubou até o meu par

Mas certa noite a lua veio
Pra tudo alumiar
De tal maneira que toda a cidade
Enfim se pôs a cantar

Sumiram fantasmas, voaram as bruxas
Comeram-se os canibais
Não sei explicar, mas tais criaturas
Nem eram meus rivais

Foi assim que perdi a velha mania
De nunca, jamais crer
No que claramente, bem claramente
Meus olhos não podem ver

Então vi mais fundo, vi mais o mundo
Mais lindo e muito mais
Vi o amor, seu cheiro e cor
Enfim minha fé em paz

Bendita mandinga, bendito quebranto
Que me acometeu
Bendita Iara, seu beijo e canto
Bendito seja Deus

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