quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Triste carmesim (Agostinho Fortes)


Eu sem você
Não tenho assunto
Mas sei que ainda
Estamos juntos
No pôr-do-sol
Triste carmesim
Trago as flores
Saudades sem fim

Eu sem você
Vivo a chorar
Dias sem fim
Noites sem luar
Pobre de mim
Que estou a esperar
A paz que, enfim
Virá me buscar

Você se foi
Sem mais, nem porquê
Meus olhos no mar
Aguardam lhe ver
Se a vida conduz
Sempre ao mesmo fim
Espero a luz
Que a levou de mim

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Luana (Agostinho Fortes)

Vem raio de sol
Vem bronzear meu corpo
Vem dourar os meus cabelos longos
Vem minha Luana
Me abrasa os lábios, cora minha face e ferve meus sentidos
Vem aguçar
A minha nuca, pele, pêlo, boca, seios e ouvidos
Minha Luana, estou tão linda

Vem raio de sol
Me dá a cor de um pecado
Que ninguém perdoa
A cor dos bichos
Que eu fico assim pagã mestiça à flor da pele e ávida de brasa
Minha Luana,
Eu fico aflita a te esperar sozinha nessa imensa casa
Minha Luana, seja bem vinda

Vai minha Luana
Que a cidade toda nos quer ver
Queimando feito bruxas
Foge Luana
Mal sabem eles que se a gente queima, a gente vai com os ventos
As nossas cinzas
Redemoinhos espalhando, derramando os bons momentos
Nossa alegria, nossa paixão tão proibida
Tão ilegal, tão infernal e destemida

Valiosa prata (Agostinho Fortes)


Ah,
Se minha mão tocasse a lua,
Se você quisesse que ela fosse sua
E ela coubesse na palma da mão

Quando chegasse o momento oportuno
Em que os astros desse céu noturno
Se distraíssem por qualquer razão

Eu furtaria a mais valiosa prata,
Me esconderia no meio da mata
Sob um céu vítima dessa paixão

Ah,
Quando acordei não era dia,
Não foi um sonho a minha covardia
De roubar em nome de um só coração

Arrebatei as noites de luar
Dos namorados, seresteiros,
Poetas e boêmios baderneiros
Pra um belo dia vir a maldição

E então,
O sol que sempre vinha atrás da sua amada
Ao perceber que fora sequestrada,
Nunca mais raiou pra gente não

Ah meu bem,
E se você ainda quiser a lua
Saiba ... que quanto mais longe, mais é sua
E mais perto fica do seu coração

A rosa do carnaval (Agostinho Fortes)


Essa boca mentirosa
Da Rosa, da Rosa
Sempre tão cheia de prosa
Que rosa, que rosa

Diz que eu sou o tal
Único e primeiro
Mas pra não levar a mal
Quando chega fevereiro

É que o carnaval
É a primavera da Rosa
Flagrei sambando no jornal
Seminua, a mentirosa

Chego até a passar mal
Vendo sua maldade na avenida
Distribuindo em poucas horas
Todos os beijos que lhe dei na vida

Essa boca caridosa
Da Rosa, da Rosa
Quarta-feira vem dengosa
Me goza, me goza

Eu choro samba (Agostinho Fortes)

 
Eu faço samba
Eu choro samba
Só pra me divertir
Meu tamborim que leva a vida
E não deixa a peteca cair

Eu faço samba
Invento um som
Faço de tudo e você não vem
Dizem as más línguas que você gosta de samba
E samba como ninguém

Chora cavaco
Chora a cuíca
Choro eu também
O meu samba há de entrar no seu barraco
E lhe fazer um bem

Eu faço samba
Invento um som
Faço de tudo e você não vem
Dizem as más línguas que você gosta de samba
E samba como ninguém
 

Doida (Agostinho Fortes)


Doida, dança no meio da pista
Pensa que é capa de revista
Encena, chora como artista
Artista, artista
E sai por aí sozinha na noite
 
A doida jura que é só minha
Verdade, mas sai por aí sozinha
Idade da filha da minha filha
Humilha, humilha
E sai por aí só minha, sozinha
 
É franca, mas gosta de fazer fita
Arranca meus olhos quando se irrita
Espanca, dá nó na minha veia
Estanca, estanca
E sai por aí faceira, ligeira
 
Vadia, na rua esquece o lar
Vampira, levou minha jugular
Revira sem dó as minhas mentiras
Que ira, que ira
E se manda vingativa na noite
 
Esperta, gosta de uma maré mansa
Perdulária, deu fim à minha herança
Hilária, me comprou uma lembrança
Não cansa, me cansa
E sai por aí fugida, bandida
 
A doida saiu por aí faceira
Artista, se mandou tão vingativa
Vampira, saiu por aí fugida
Ligeira, bandida
Mas voltou arrependida, vadia
A doida

A esperança dos dias (Agostinho Fortes)


Ah, que saudade daí
Ah, como o tempo passou
Conte alguma novidade
Que alivia a saudade
E distrai minha dor

Não, nunca vi nevar tanto
Combinou com o meu pranto
Com as areias da praia
Tudo ficou lindo e branco
E pra lhe ser bem franco
Eu até sorri
Me fez lembrar seu sorriso
Que foi meu maior aviso
Pra nunca sair daí

Ah, saudade dos meninos
Ah, saudade de você
Conte pra toda a cidade
Que eu chego num fim de tarde
Antes de escurecer

Hoje, só pensei em você
Rodei na Champs-Élysées
Com os seus olhos e sonhos
Comprei um perfume bacana
Ainda vai sobrar grana
Pra aquele paetê
Esse frio tá de morte
Que saudade do Norte
Como é duro esperar lhe ver
Trago as economias
E a esperança dos dias
Que um dia fui lhe prometer

Mãe guerra (Agostinho Fortes)

 
Súbito da guerra fez-se a paz
Ruínas gentis, cheiros de morte
Terrores sutis, calmarias mortais
Silêncios febris, sopro de sorte
Saudades violentas e gritos banais 
 
Súbito da paz fez-se a vida
Amáveis granadas inertes, tímidas fumaças
Angústias caladas e crianças retornam às praças
Mercados agitados, olarias perfumadas
Tijolo por tijolo vou vendo viúvas ouriçadas

Súbito do fim fez-se o início
Estúpido beijo da mãe guerra
Que beija o filho morto
E depois, deserda
 

Ela se descuidou (Agostinho Fortes)


Ela se descuidou
Não viu que palácios ruíam
Falésias comiam fronteiras
Se deslocando trépidas
Pelo mundo dela

Ela se descuidou
Não viu que seu tempo passava
O jardim que secava e as fogueiras
Que pairavam gélidas
Em torno dela

Ela se acostumou
Sim, com as noites sem sono
Na mesa dos ébrios
Com a vida sem sonho
No alto dos prédios

Seu tempo assim passou
Seu pranto, quebranto, encanto
Beleza e alegria
Ficaram com os homens 
De vida vadia
 
Quem sabe com eles
Foi feliz um dia 

Quereria (Agostinho Fortes)


Quereria o teu sorriso sorrir
Quereria o teu choro chorar
Quereria o teu sono dormir
E com o teu sonho na cara, acordar
Acontece que sou tão desigual
Por favor não me leves tão a mal

Quereria correr quando corres
Quando paras, ser o teu paradeiro
Quereria morrer quando morres
Quando nua, beijar teu corpo inteiro
Acontece que sou tão diferente
Não me leves a mal tão de repente

Mas se voas, às vezes rastejo
Quando ventas, sou brisa o ano inteiro
Quando és branca nuvem, relampejo
Onde esbanjas, eu conto dinheiro
Acontece que somos tão iguais
E eu sou mais tu além do mais

Quereria amar-te simplesmente
Sem querer o que queres ou não
Quereria ser louco e demente
Adorar o teu sim e o teu não
Acontece que furtivamente
Colocaste os meus pés no chão

Mundos (Agostinho Fortes)


Parti na madrugada
Com a lua no meu calcanhar
As estrelas sobre meus ombros, amor
Pareciam até duvidar

Andei por tantos mundos
Em busca de outra aurora
Que abrisse meus olhos fundos, amor
Qual raios de outrora

Dormi entre deusas e reis
Troquei pernas nos cabarés
Dancei num céu de estrelas, amor
Brilhei da cabeça aos pés

Ao me verem assim confuso
Demônios debaixo do mar
Anjos de todas as nuvens, amor
Quiseram minha alma levar

Querida, dá-me um sorriso
Preciso te amar já
Deixei o meu coração no teu peito
E agora eu vim buscar
 

Querida lua (Agostinho Fortes)

 
Lua, querida lua
Por vezes me falam de ti, assim, com seriedade
Da prata pura
Do astronauta que te pratica em treinamento
Dos calendários, telescópios, marés e seus movimentos
Da tua massa, circunferência e de teus elementos
Querida lua, verdade nua

Lua, querida lua
Outras vezes me falam de ti, assim, com poesia
Da tua cura
Dos que te miram em sofrimento, profecia e magia
De como flutuas na memória flácida de quem já amou um dia
Da cara incrédula e pálida de quem já te viu sombria
Querida lua, bijuteria

Lua, querida lua
Mas eu, como um bom poeta vagabundo, te exagero
Querida lua
Te prometo às donzelas, dou mil tons à tua luz
Só pra te por numa canção que compus
Pra um amor qualquer que finjo amar e não faz juz
A ti, querida lua, lua querida

Fera nua (Agostinho Fortes)


Ela foge por vãos e labirintos
Mas seu rastro não se desfaz
Vou atrás com meus olhos tão famintos
Com a fome e a fúria dos animais

É afoita, ligeira e arisca
Na mata escura ela se disfarça
Fora de sua toca não se arrisca
Indomável é a sua raça
 
No escuro posso sentir seu cheiro
Me aproximando com punhos fortes
Ela mostra seus dentes e desespero
Ameaça me dar um bote

Num só golpe me puxa e expulsa
Retrai, impulsa e não se cansa
Seu grito doido de aflição e alívio
Prazer rasgando a sua garganta

Já não demonstra medo do seu senhor
Seu corpo se agitando selvagem
Seu suor correndo em minha boca
Quente de medo e coragem

E quando enfim seu corpo se aquieta
Seus olhos miram o infinito
Sua boca esfriando entreaberta
Rosna mansa o seu instinto
 
Domada pelo seu caçador feroz
Fez dele seu amor, presa e algoz
Fera nua, meu bicho do mato
Foge de novo que eu lhe cato

Ode ao Rio (Agostinho Fortes)


Andar por todo esse Rio e ver
As cores de um mar sem fim
Gaivotas tresloucadas
Perfuram feito espadas
O azul do mar que sangra em mim

Andar por esse Rio e não perder
Meu olhar bobo de turista
Vendo as praias e os mares
A vida sentada nos bares
Na orla me perder de vista

Orar e xingar na catedral do gol
Fla-Flu faz a terra tremer
Vi meu sonho na Sapucaí
Da Pedra da Gávea eu caí
Na Lapa vai amanhecer

Trocar de catedral embriagado
Ver em cores a Sapucaí
Gaivotas no fla-flu
Espadas a cair
No mar que sangra azul
Turistas por aí
A Lapa vai tremer
Um gol pra divertir
Na orla amanhecer
O Rio que é aqui
Sobre a Gávea então voar
Voar até cair
Os bares na tv
Acho que já vou dormir

Ladrão poeta (Agostinho Fortes)


Eu sou mesmo um bom ladrão que ama
E que rouba dos poetas
Suas mentiras, os seus versos e paixões
E dos infelizes, fantasias
Poesias de ilusões

Roubo de outras vozes melodias
Estribilhos e emoções
E assim faço minhas, sempre minhas
As minhas próprias canções

E as notas dos instrumentistas
Borboletas suicidas
Caem assim nas minhas mãos
Mortas na canção
E faço uma canção

Eu sou mesmo um bom ladrão que ama
Quem me dera eu roubasse
Bem assim teu coração
Me dá o teu perdão
Que faço outra canção

Eu sou mesmo um ladrão fajuto
E que pra roubar teus olhos
Faço cena de um filme que gostei
Eu sou mesmo um poeta que ama
E pra sempre te amarei
 

Ode ao Rio - versão 2 (Agostinho Fortes)

Ando no Rio
Respiro as praias, as saias e os mares
Vejo a vida sentada nos bares
Feliz

Subo ao Cristo
É como se jamais tivesse visto
Meu olhar de turista a pasmar
Feliz

Ando no Rio
Bebo o Cristo, as saias e os mares
Meu olhar confundindo nos bares
Paris

Iara (Agostinho Fortes)


Foi um quebranto, mandinga ou encanto
Que me acometeu
Eu na beira do rio e ela sorriu
Era só ela e eu

Deu-me a boca, beijou-me louca
E desapareceu
Passei a ver e só eu que via
Gente que já morreu

Vi criaturas, fogo nas alturas
Ao lado de um serafim
Jurupari entrou no meu sonho
E o sonho não tinha fim

Vi Iara espalhando seu mais lindo canto
Seu chamado sedutor
Vi, em seus braços, pobre e feliz
Um jovem pescador

Naquelas águas, na calmaria
Vi morte e amor
Mula sem cabeça, antes que eu me esqueça
E a Cuca me pegou

Matita Perê, sei, ninguém vai crer
Mas ouvi assobiar
Numa rajada de vento na cara
Saci sabe assustar

Sumiu meu fumo, sumiu a pinga
Até mesmo o meu alento
Vi as pegadas de Curupira
Sumindo mata adentro

Boitatá me cegou, nem vi, me queimou
E o boto rosa a dançar
Deixou as raparigas cheias de barriga
Roubou até o meu par

Mas certa noite a lua veio
Pra tudo alumiar
De tal maneira que toda a cidade
Enfim se pôs a cantar

Sumiram fantasmas, voaram as bruxas
Comeram-se os canibais
Não sei explicar, mas tais criaturas
Nem eram meus rivais

Foi assim que perdi a velha mania
De nunca, jamais crer
No que claramente, bem claramente
Meus olhos não podem ver

Então vi mais fundo, vi mais o mundo
Mais lindo e muito mais
Vi o amor, seu cheiro e cor
Enfim minha fé em paz

Bendita mandinga, bendito quebranto
Que me acometeu
Bendita Iara, seu beijo e canto
Bendito seja Deus

Artista do sinal (Agostinho Fortes)


Mora no Vidigal
Ensaia um mortal
Faz mil malabarismos
Artista do sinal
Brinca no asfalto
Com a bola, dá caneta
Encena um assalto
E arrebata uma preta

Se hospeda em Bangu sem querer
Não larga o celular, quer vender
Inventa um motim e organiza a nação

Foge da polícia
Já tem até família
O barraco tá pequeno
A nega é uma delícia
Serve no Vidigal
Vai buscar um papel
Sentinela ligado
Vigiando o quartel

Se hospeda em Bangu sem querer
Não larga o celular, quer vender
Inventa um motim e organiza a nação

Se hospeda no Cajú sem querer
O luto vai passar na tv
O morro chora assim, sem consolação


Ali defronte (Agostinho Fortes)


No rio ali defronte
Toda a correnteza corria
Todos os peixes havia
No rio ali defronte

E o velho, cá do alto do monte
Na sua cadeira de balanço que rangia
Com seus olhos marejados de vigia
Admirava o rio ali defronte
 
Lá, toda rede se lançava
Todo parto se fazia
Toda sede se matava
Batizados, noite e dia
 
E o velho via cá do monte
Toda moça que se banhava
Também a roupa que se lavava
Naquele rio ali defronte
 
Um dia, o velho do alto do monte
Não mais veio à sua varanda
E ninguém sabe por onde anda
O vigia, que vivia ali defronte
 
E, então, o rio secou
Reza a lenda que as lágrimas do velho
Eram do rio a fonte
Aquele rio que não tinha margens
Muito menos ponte

Um rio que vinha não sei de onde
E que só no sonho do velho existia
Pois nem eu, nem ninguém sabia
Que aquele rio ali defronte
Era o rio das saudades
Das saudades de uma vida
Que vivia lá no monte