domingo, 15 de outubro de 2017

Por aí (Agostinho Fortes)

Se você me encontrar por aí talvez
E me pedir pra voltar outra vez
Eu vou lhe mostrar
A paz que encontrei
Você não vai acreditar
Que me curei

Dói nos meus olhos ver que você ainda quer
E procura em mim aflito a mesma mulher
Ávida de tempestade
Na flor da idade
Brigando com o mar
Plena de audácia e certeza
Contra a correnteza
E sem paciência pra amar

Se você me encontrar por aí feliz
Vai me dizer que eu sou mesmo uma atriz
Não vai compreender
Meu olhar sereno
Que vem dos beijos da maré
E de algum moreno

Cansa meus olhos ver que você ainda quer
E procura em mim confuso aquela mulher
E o ódio com que nos amamos
E nos afagamos
Como um vício sem fim
Não há de vê-lo em meu rosto
Sei que não é do seu gosto
Mas só há sorrisos em mim

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Ana falou de mim (Agostinho Fortes)

Hoje alguém dizia
Que Ana falou de mim
E que muito maldizia
Dizem até que ria
Dos anos junto a mim

E eu que já nem lembrava
Que um dia amei tal mulher
Parece que vive brava
Não entendo tanta raiva
E por que mal me quer

Ana mandou recado
Será que é mesmo pra mim?
Diz que tem um namorado
Que lhe faz um bem danado
E vai se casar enfim

Mas Ana não sorria
Na foto de algum jardim
Parecia tão vazia
E o pouco que nela havia
Era o que guardou de mim

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Seus cuidados (Agostinho Fortes)

Ela esbanja tempo
Enquanto eu cato as horas
Que ela displicente
Vai jogando fora

Enche de aventuras
O meu velho coração
Que bate fraco e lento
Na cadência da solidão

Esnoba a minha alegria
Sorrindo tão juvenil
Lembra dos meus remédios
Mas vive com o corpo febril

Gosta de me ver contar
Sobre as travessias no mar
Sobre épicas batalhas
Que travei no meu caminhar

Amanhã não terei seus cuidados
Ela disse que vai se casar
Vai penar, vai sorrir, vai ter filhos
E depois vai também me contar

Joana, diz pro teu moço
Pra ele não se enciumar
Que eu já não tenho cobiça
Só a minha preguiça
Pra te dar

Joana, por onde andas?
Eu quero tanto te olhar
E então na chama da vida
Que arde em teus olhos
Me esquentar

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Andarilho (Agostinho Fortes)

Já andei por tantos mundos
Já vi mundos maltratados
Miseráveis e imundos
Entretanto delicados
Com amores mais profundos
Do que aqui por esses lados

Vi mulheres que amavam
Por palácios e dourados
E beijavam e velavam
Maridos envenenados
Vi o amor mais verdadeiro
Nos menos afortunados

Vi o suplício e a corrente
Vi gente vendendo gente
Vi um escravo alforriado
Retornando tão contente
Pro engenho atordoado
Não quer mais seguir em frente

Vi a igreja espalhando
Muitas missas indecentes
Lindas bruxas vi queimando
Vi no inferno inocentes
Vi uma fé inexplicada
No olhar dos mais carentes

Vi no repicar dos sinos
No soar de mil trombetas
Vi no rufo dos tambores
No golpe das baionetas
Consagrada a guerra santa
E o terror pelo planeta

Vi meninos que sonhavam
De arma empunhada
Virar fogos de artifício
Alumiando a madrugada
Explodindo em sacrifício
Pra no céu ter namoradas

Vou cansando pela trilha
Meu passeio me redime
No meu radinho de pilha
Vou ouvindo mais um crime
Entre a cruz e a espada
Subo aos céus num passo firme

Vejo fogos de artifício
Vejo bruxa alforriada
Vejo escravos de dourado
Com a vista já cansada
Subo aos céus embriagado
Saio enfim sutil da estrada

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Me diz (Agostinho Fortes)

Diz quem foi que fez esse dia a dia
E inventou o tal do despertador
Diz pra que toda essa correria
Que não tenho tempo pro amor
Diz quem foi que inventou toda essa lida
E esqueceu de inspirar o trovador

Me diz, me diz
Me explica por favor
Como é que faz pro nosso amor
Nunca mais acabar

Diz quem foi que fez essa gente rica
E esqueceu do pobre trabalhador
Diz como é que tem água na piscina
Se lá no açude já secou
Diz quem foi que curou na medicina
O primeiro doutor que se formou

Me diz, me diz
Me explica por favor
Como é que faz pro nosso amor
Nunca mais acabar

Diz quem é que na vida pôs os trilhos
Que o meu vagão descarrilhou
Quem contou meu futuro à cartomante
Que o meu casamento ela errou
Afirmou o dia da minha morte
Que há muito tempo já passou

Me diz, me diz
Me explica por favor
Como é que faz pro nosso amor
Nunca mais acabar

Diz quem é que escolheu a cor do mar
E os seus olhos da mesma cor pintou
Diz onde é que o vento faz a curva
Que já passou reto e não parou
Se o amor é uma coisa que acaba
Ou vai virando sempre um novo amor

Me diz, me diz
Me conta por favor
Qual o segredo de um amor
Que nunca há de acabar

Diz pra que tanta tecnologia
Você vidrou no computador
Mas só eu que esbanjo alegria
E posso chorar a minha dor
E só eu que posso morrer na vida
E sou filho de Deus Nosso Senhor

Me diz, me diz
Me beija por favor
Pra eu sentir que o nosso amor
Nunca vai acabar

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Nosso fim (Agostinho Fortes)

Eu sei que ela me amou
E o quanto insistiu
As vezes que ela orou
E as vezes que desistiu

Eu sei que ela revidou
Com outro me confundiu
E a gente se mereceu
E a gente fez que não viu

Eu sei que já me enterrou
Nalgum terreno baldio
E lá o mato cresceu
Com cheiro de amor vadio
E é lindo, que lindo

De cara ela se entregou
E aos poucos ela partiu
Por tantas me perdoou
Por outras ela fingiu

Eu sei que já me enterrou
Nalgum canto de jardim
E lá brotou uma flor
Zelosa do nosso fim
E é linda, que linda

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Teu vigia (Agostinho Fortes)

Quando eu tiver enfim que partir
Quando eu vir minha hora chegar
Dá-me um sorriso manso
Sussurra um segredo
Que eu possa comigo levar

Quando eu não estiver mais aqui
Não quero te ver sempre a chorar
Quero um luto breve
E um pranto leve
Que a brisa possa levar

Quando a alegria voltar em ti
Quando um sorriso te escapulir
Serei o teu vigia
Noite afora
Do meu ciúme hei de rir

Lá no recanto do peito teu
Guarda bem firme o meu lugar
E se algum maldito
Te faltar respeito
O sujeito, eu vou assombrar

Eu juro que sabia
Que uma só vida
Era curta para te amar

domingo, 2 de julho de 2017

Cada palavra (Agostinho Fortes)

Cada palavra que eu aprendia
Guardava só pra ti, pra ti
Quantos poemas que eu decorava
E hoje já esqueci

Faziam revoluções
Lá no seu coração
Muitas palavras
Tu nem conhecias
Mas gostavas do som

Com quantas palavras eu me perdia
Tentando te traduzir, fingir
Com palavras sérias e versos profundos
Que só te faziam rir

Cultivavam plantações
Lá no seu coração
De lindas orquídeas
Que inda hoje perfumam
A tua nova paixão

Tantas poesias que eu não compreendia
Mas as recitava bem, tão bem
Palavras tão raras e que eu escrevia
Hoje não me fazem bem

Outras palavras ruins
Vieram depois
De uma nuvem negra
Despencaram certeiras
Violentas sobre nós dois

Com duras palavras nos afastamos
Estranhos nos tornamos, gritamos
Reles palavras ficando mais curtas
Até que nos calamos

Tantas palavras vis
Feitas pra trucidar
Como a peste negra
Nos contagiaram
Com uma febre de calar

terça-feira, 13 de junho de 2017

Barco à vela (Agostinho Fortes)

Ando perdendo a cabeça pensando só nela
Ela fazendo a minha cabeça girar
Hoje cedo quando eu fui abrir a minha janela
Eu pensei que era ela que vinha
Voando, cantando e sorrindo no seu barco à vela
Claro que ainda sou dono da minha razão
Quando a vejo, eu juro que sinto trincar a costela
E o meu coração quase surta
Brecando, cuspindo, engasgando até que congela
Claro que ainda sou dono da minha aflição
Eu confundo, eu erro, tropeço e bato a canela
Quando saio correndo pensando
Que é ela com meu coração já em alguma tigela
Ela fazendo a minha cabeça gritar
Hoje cedo quando eu fui abrir a minha janela
Era uísque, era ela, era tudo
De novo na minha cabeça e no seu barco à vela
Claro que tenho o controle da situação
Lanço a minha cabeça no abismo e acendo uma vela
Que é pra ver o nome dela sumindo
De vez e descendo ardendo pela minha goela
Claro que já não me importa a minha digestão
Hoje cedo quando eu fui abrir a minha janela
Eu pensei que era ela, era outra
Era aquela que eu vi outro dia naquela novela
E claro que minha cabeça é só confusão
A paixão é uma febre divina que deixa sequelas
E é por isso que eu sofro, que eu amo
E guardo no fundo e confundo quase todas elas
Lá lá laiá lá laiá lá laiá lá laiá ...

domingo, 4 de junho de 2017

Lar (Agostinho Fortes)

Nas várzeas, montanhas
Nas vilas, nos vales
Nas minhas entranhas
No fundo dos mares
Em alguma estrela
Eu sei que vou te encontrar
Meu verdadeiro amor
Meu verdadeiro lar

Nos sonhos, ideias
Nos palcos, plateias
Entre mil pagantes
No alto dos Andes
Em alguma costa
Eu sei que vou te avistar
Meu verdadeiro amor
Meu verdadeiro lar

Nos pólos, nos centros
Nos solos sangrentos
Debaixo da terra
No meio da guerra
Num poço profundo
Eu hei de te resgatar
Meu verdadeiro amor
Meu verdadeiro lar

Nos prados, fazendas
Mesquitas, capelas
Pecando e rezando
Em alguma delas
Ao luar num banho
Eu sei que vou te flagrar
Meu verdadeiro amor
Meu verdadeiro lar

E se eu demorar
E se a vida quiser
E a sorte puser
Você num altar
Eu pego um avião
E vou então te salvar

Esqueço as várzeas
Os vales, os sonhos
Plateias, pagantes
Os pólos, os prados
Mesquitas, capelas
E corro para evitar
Que essa sorte maldita
Decida com quem vais ficar

segunda-feira, 29 de maio de 2017

De outros carnavais (Agostinho Fortes)

Vejo a tua corja se espalhando demais
Nas praças, nas festas, infestando os jornais
O povo te quer pregado, agonizando na cruz
Numa cela suja e sem luz

Choras miséria, negocias milhões
Teu grito sincero atrai multidões
Mas espero te ver um dia sem voz
Na boca de algum cão feroz

Recolhe os teus bens e a tua quadrilha
Puseram escuta, radar e armadilha
Delata os teus amigos, suja de vez o teu nome
E não fales ao telefone

Roubaste dos pobres e deste pros teus
Fazendo justiça em nome de Deus
Habitas o fétido, esgotos e breus
Teus segredos já não são só seus

És altruísta, crente fervoroso
Gostas de criança, cuidas do idoso
Tua causa é justa e amas os animais,
Mas te conheço de outros carnavais

Só você não viu (Agostinho Fortes)

Fique numa boa, não tenha amigos
Nunca fique à toa, Deus está contigo
Cuide bem dos filhos, limpe bem a casa
Espere o seu homem com o corpo em brasa

Viva pro marido, ponha a mesa farta
Um jarro florido e um sorriso na cara
Corte esse cabelo, estanque a sua veia
Cale o seu apelo, esqueça a vida alheia

Estrague a sua vida, siga a cartilha
Faça desse inferno uma maravilha
Não tenha vontade, espere o paraíso
Receba seu homem sempre com sorriso

Lá fora o cais tá cheio, a lua brilha cheia
O mundo todo veio, tem sarau na areia
Mas muito cuidado, não olhe lá fora
Amar é um ofício e você tem hora

Como é que faz agora que o sarau acabou?
O cais está vazio e você demorou
Só você não viu, o mundo lhe avisou
O cais está sombrio e só você ficou

Eu bem que lhe avisei, mas você insistiu
Agora já é tarde, nosso barco partiu
Eu bem que implorei, você não reagiu
O tempo passou e só você não viu

Não entendo (Agostinho Fortes)

Eu nem lhe faço tão bem
Jamais lhe tratei com mimo
Mesmo assim você reclama de mim
Imagina se eu lhe adorasse
E fizesse as suas vontades
Aí, com certeza, seria o meu fim

Jamais lhe dei uma flor
Muito menos jurei amor
Mesmo assim você não liga pra mim
Esqueço o seu aniversário
Você pede e eu faço ao contrário
Não entendo você não ser louca por mim

Morena (Agostinho Fortes)

Morena, quero te ver sorrir
Morena, eu só quero o teu bem
Por isso é que eu não vou dormir
Pra velar o teu sono
E os sonhos que ele tem

Morena, eu só faço chorar
Nas noites frias que tu não vens
Cuidado pra não judiar
Dum pobre coração
Que não tem mais ninguém

Morena, eu só faço te amar
Meus olhos foram feitos pra ti
Desse amor não vou me descuidar
Se um dia eu partir,
Deixo meus olhos aqui

terça-feira, 16 de maio de 2017

I never cry (Agostinho Fortes)

Às vezes perco um amigo
Outras é alguém que se vai
Às vezes corro perigo
Algum amor que me trai
Num quarto de hotel
Nada me distrai
And you know
I never cry, I never cry

Às vezes é alguém chegando
No Jobi com amigos bebendo
Outras é só o sol raiando
E o Maraca inteiro tremendo
Eu em Nova York
É tanta chuva que cai
And you know
I never cry, I never cry

Às vezes sinto saudade
Às vezes falo sozinho
Às vezes mudo de cidade
Até já gostei de carinho
Manda um beijo
Pra mãe e pro pai
And you know
I never cry, I never cry

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Meu verão (Agostinho Fortes)

Cheirosa, das ervas
Ela me acaba com seu jeito de querer sempre mais
Passeia nas trevas
E diz que lá é o lugar onde ela encontra a paz

Me beija, me olha
Com olhos sombrios
De afundar navios
Estraga meu coração
Vai congelar meu verão
Me amar só por mais essa estação

Encurta meus dias
Ri pra fulano, ama sicrano e quer comigo dançar
Suas coxas, enguias
Enlaçam a minha cabeça a fim de decapitar

Me beija, me olha
Com olhos vazios
De dar calafrios
Arranca meu coração
Vai atrasar meu verão
Quer amar enquanto espera o avião

A deusa, a grega
Diz que me quer e às vezes some entre ruínas e mar
Na noite mais negra
Ela derruba catedrais e traz na mão o luar

Me beija, me olha
Com olhos bandidos
Vermelhos e ardidos
Leva o meu coração
Esconjurou meu verão
Vai amar mais de cem nessa estação

Pôs fogo em Roma
No Coliseu amou com os brutos e não deu seu perdão
Gelada, em coma
Depois que ama, ela mata e morre sem compaixão

Acorda, me olha
Já é de manhã
É Amsterdã
Devolve meu coração
Já vem chegando um verão
Vou partir, foi uma satisfação

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Alguma dança (Agostinho Fortes)

Ela e sua novena
Ela e seu temor
Ela e sua pequena, ninando
Com tanta vida aí
Com tanta gente aí
Ela só fica imaginando

Ela e seu domingo
Ela e sua missa
Ela e o seu sorriso tão lindo
Mãe viúva e só
No seu peito um nó
E ainda está sorrindo

Ela e sua andança
Ela e seu pudor
Ela e sua esperança surgindo
Com tanto moço aí
Disposto a iludir
Ela está resistindo

Ela e seu fervor
Ela e seu corpo
Ela na sua cama inquieta
Com tanto céu aí
Com tanta lua aí
Deixa a janela aberta

Ela sem lembrança
Ela e seu vestido
Alguma esperança
Seu olhar extrovertido
Hoje está pedindo
Alguma dança

domingo, 2 de abril de 2017

Mais vale um violão (Agostinho Fortes)

Não sei por que
Você vem falar sério agora
No auge da festa
No meio do salão

Não sei para que
Tantas perguntas agora
A dor não presta
Mais vale um violão

Já não importa
O que aconteceu
Hoje o sangue é seu
Na minha aorta

Pra que tanta tristeza?
Pode entrar sem bater
Ponha a beleza na mesa
E feche a porta

terça-feira, 28 de março de 2017

Memória (Agostinho Fortes)

Teu corpo todo esfacelado
Nos cantos, no quarto
A tua dura carne em nacos
Nas bocas, nos pratos
Minha memória castigando o coração

O teu pavor e desespero
Nas noites, nos becos
A tua língua com tempero
Nos beijos mais secos
Minha memória provocando um turbilhão

A tua pele esticada
Curtida, na estrada
No varal e no tapete
Do hall de entrada
Minha memória pisa assim no coração

Teu céu da boca no telhado
Nos vinhos, nos copos
Teu desejo espalhado
Nas pias, nos colos
Minha memória sacudindo o coração

O teu olhar em cada cara
Vidrado, insano
No quarto ao lado da outra casa
Teu grito profano
Tua memória castra enfim meu coração

segunda-feira, 27 de março de 2017

Teu norte (Agostinho Fortes)

Menina, quero ser teu norte
Menina, quero ser teu par
Eu sei que é como a morte
Ver um amor acabar
Tu andas tão desiludida
Sentida de tanto amar
De seres abandonada
E também de abandonar

Por isso eu te abro um corte
Pro coração poder passar
E sempre que ele bater forte
Ao meu vir se juntar

Menina, pega a minha mão
Que eu sei que posso te levar
Por campos ensolarados
E caminhos à beira-mar
Tu andas desconsolada
Do amor queres descansar
De tanto seres enganada
E também de enganar

Por isso, eu te faço um barco
Pro teu coração navegar
E sempre que ele bater fraco
O meu vai agitar o mar

Por isso eu te abro um corte
Pro coração poder parar
Quando for chegada a morte
E ao meu vir se juntar

quarta-feira, 22 de março de 2017

A coisa é séria (Agostinho Fortes)

Tropeça, canta, brinca e rodopia
Distribui seu alto astral
Perdeu o juízo, perdeu família
Mas nada faz tão mal

Perdeu dinheiro, achou uma panela
O almoço vai ser bom
Acende vela
Reza cantando
E nunca perde o tom

Bagunça, samba, bebe e cambaleia
Faz o seu carnaval
Perdeu a casa, perdeu vergonha
Dorme sobre o jornal

Perdeu memória, achou uma cadela
Que a segue aonde for
Quem passa e olha
Só vê miséria
Não enxerga a flor

A coisa é séria
Lá dentro dela
Tem a mais linda flor

A coisa é séria
A flor mais bela
A vida lhe plantou

terça-feira, 21 de março de 2017

Fiz a sua mala - 2ª versão (Agostinho Fortes)

Como era de costume, fiz a sua mala
Não repare no volume, não repare em nada
Nem em toda a minha dor estampada na cara
Se a gente fica cara a cara é pior que nada

Fiz caber no velho couro o seu grande reinado
Acredite, dessa vez está tudo acabado
Carregue as suas costas frias e lanhadas
Pelas mãos das boas moças que não valem nada

Leve seus beijos frouxos e de caridade
Meus dias infelizes, sua crueldade
Mas deixe o que restou da minha vaidade
Que de tanto maltratada esvaiu-se em lágrimas

Deixe o que restou da minha sanidade
Que de tanto perturbada vive a dar risada
E as nossas palavras de amor e dor
Não está mais aqui quem falou e chorou

Aquela esperança de você mudar
Aquele perdão disposto a perdoar
Aquela vontade de lhe consertar
Já não andam por aqui nesse resto de lar

Amanhã serei a dona da minha vontade
Sairei nua e feliz por toda a cidade
Vou me vingar assim em outro amor qualquer
Imaginar você em outro que me quer

Vou seguir dilacerando corações alheios
Mostrando felicidade, insinuando os seios
E vou seguir te amando como Deus quiser
Ou como o diabo gosta e como eu puder

quinta-feira, 16 de março de 2017

Samba arretado (Agostinho Fortes)

Hoje meu violão tá diferente
Eu fiz um samba muito arretado
E aquela morena indiferente
Vai se curvar, vai ser bem engraçado

Hoje eu rodo a roda de samba
Alguém vai acabar bem enjoado
E a cabrocha que se diz a bamba
Hoje não vai mais me olhar de lado

Meu samba hoje traz a maré cheia
Muita holandesa e um beijo importado
Vai perturbar uma paixão alheia
Deixar algum marido chateado

Da bateria ela é a rainha
Mas hoje vai me pedir um trocado
Pois a morena hoje quer ser minha
Gamou no meu refrão que é um pecado

Hoje meu violão tá diferente
Meu samba hoje tá um esculacho
Quem for careta e não for pra frente
Só de ouvir também vai ser culpado

terça-feira, 14 de março de 2017

Vida boa (Agostinho Fortes)

Ela diz que é sem nome
Sem filhos, mãe, sorte e lugar
Mal sabe o que é compromisso
Perde a hora de chegar
Seu ganha-pão é a fantasia
Do amor que ela não tem pra dar
Às vezes se sente vazia
Mas já vai trocando de par

Que vida boa
Vive sempre à toa
Seu sorriso ecoa se ela faturar

Anda cansada dessa vida
A vida que custa a passar
Cansada de gente ferida
E de gente que quer machucar
Seu corpo anda esmorecido
Mas não deixa o copo esvaziar
Seus seios engasgam maridos
Daquelas que estão a chorar

Que vida dura
Será que ela dura?
Será que tem cura esse seu penar?

E a vida passa
Ela quer outra taça
Faz mais uma graça enquanto não passar

segunda-feira, 13 de março de 2017

Olhos azuis (Agostinho Fortes)

Ela não tinha luz nos seus olhos azuis
Imaginava o sol, falava com Jesus
Na sua escuridão pintava um jardim
Mas sempre me dizia ter olhos só pra mim
Prometeu comigo um dia se casar
Se Deus lhe devolvesse o luar

Seus olhos sempre mirando o infinito
Nunca vi olhar igual, nem assim tão bonito
Certa manhã, a luz, o primeiro dia
Um par de olhos loucos brilhando em agonia
A primeira fresta, a primeira cor
Tinha dia de sobra e as formas que imaginou

Seus olhos marejados já podiam ver
A casa, o jardim e as coisas na tevê
Mas ela ao me ver, não gostou do que viu
Eu era seu espelho, espelho que partiu
Perdi os olhos meus que nem eram azuis
Ela ganhou os dela e eu levei a cruz

Ela não quis mais casar, pediu perdão a Deus
Ela queria o mundo dentro dos olhos seus
Com coração partido, eu tinha que partir
Eu tinha que chorar, eu tinha que fugir
Deixe-lhe um bilhete dando o meu adeus
"Amor da minha vida, cuide bem dos olhos meus"

quarta-feira, 8 de março de 2017

Hoje é dia dela (Agostinho Fortes)

Hoje é dia dela
Dia mais feliz
Subi uma torre
Enfrentei dragões
Pra entregar as flores
Que ela sempre quis
Hoje é um dia tão feliz

Deus, olha só
Perdoa o que eu fiz
Bebi nas tabernas
Tropecei nas pernas
E dei uma flor
Pra cada meretriz
Hoje quem sabe alguma delas foi feliz

Hoje é dia dela
E olha o que é que eu fiz
Trouxe minha coroa
Fortuna e país
Mesmo ouvindo dela
Que ela nunca quis
Hoje é um dia tão feliz

Hoje é dia dela
E olha o que é que eu fiz
Entreguei de bandeja
O meu coração
E fiz jorrar meu sangue
Em seu chafariz
Será que faço ela assim feliz?

Hoje é dia delas
E olha o que é que eu fiz
Trouxe o veneno
O amor eterno
E o abraço fraterno
Que ela sempre quis
Hoje é um dia tão feliz

Hoje é dia delas
Vim dar os parabéns
São mil primaveras
Invadindo janelas
Seu rosto pintado
Em mil aquarelas
Hoje é um dia tão feliz

Eu vim de uma delas
Naturalmente
Ou no seu ventre
Bem levemente
Deixei uma dor
E uma cicatriz
Quem sabe ali foi o seu dia mais feliz?

sábado, 4 de março de 2017

Os nossos anos (Agostinho Fortes)

Mulher,
Quero acalmar teu pranto
Relembrando o tempo, todos os nossos anos
Relembrando os dias, dia a dia, nossa dor
Nossa lida, nossa alegria e nossos enganos

Mulher,
Quero juntar-me ao teu pranto
Chorar as palavras com as quais nos cortamos
Chorar o perdão, que dia a dia, nos redime
Nossas noites em silêncio, dias sem encantos

Mulher,
Quero te dar a rosa da calma
Que brotou das cinzas, fruto das idas e vindas
Que brotou desse amor, que hoje inda choramos
E que cheira a ternura, a louvor e recolhe os anos

Meu amor,
Deixa-me enxugar nosso pranto
Pois o que choras é só o espanto
Ao perceber o tamanho desse amor
Desse amor que vem a tempo de um tempo mais brando

sexta-feira, 3 de março de 2017

Eu quero mais (Agostinho Fortes)

Vida
Eu quero mais da vida, quero além da vida
Entrar por todos os umbrais
Arrombar saídas
Vasculhar o caos, a dor
O dedo na ferida

Vida
Mesmo contra o mar e toda a ventania
Estufa a vela, aperta o peito
Desatada sangria
Chegar, amar, partir
Tudo num mesmo dia

Vida,
Mesmo queimando a pele em carne viva
Beber as labaredas
Cuspir fantasias
Rodar, rodar, cair
Na mais profunda fenda da alegria

Vida,
Quero subir bem mais que o mais arrogante alpinista
Eu quero a queda em queda livre
E que meu bem assista
O susto, o tombo, o grito
Todo o risco dessa vida

quinta-feira, 2 de março de 2017

O grande amor (Agostinho Fortes)

Ô menino, me conta um segredo
Como se faz pra encontrar o grande amor
Aprendo tricô, durmo e acordo cedo
Ou saio em devaneio cheirando a flor?

Ô menino, explica o grande amor
Se é inquietação e falta de ar
Ou é dormir na paz do Nosso Senhor
Como se nunca mais fosse acordar?

Explica como termina o grande amor
É um coração definhando o ano inteiro
Ou será feito um rolo compressor
Avançando sobre o jardim ligeiro?

Me diz, me diz
Se o amor é desengano
Fim de festa, fim de ano
Se o amor sempre é fugaz
Vi o grande amor num filme
Mas já saiu de cartaz

quarta-feira, 1 de março de 2017

Joana da janela (Agostinho Fortes)

Pedro construía barcos,
Mas tinha medo do mar
Lia plantava as suas flores
Para Ana arrancar
Dora adorava chuva
E evitava se molhar

Carlos sonhava com fama
Cinema, Leblon, dinheiro
Mas tinha medo da cidade
E rezava o dia inteiro
Léo planejava aventuras
Mas temia o nevoeiro

E a Joana da janela
Que se sonhava casada
Paralisada à espera
De um amor que imaginava
Nunca mais abriu a porta
Nem quis ouvir serenata

Pedro já caiu no mar
Lia colheu suas flores
Dora pegou um resfriado
Carlos canta seus cantores
Léo cruzou os sete mares
Joana ficou sozinha
Joana e suas dores
A Joana e sua vidinha
Nunca mais ousou amores
Joana, tão bonitinha

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Esquecido (Agostinho Fortes)

Hoje acordei e de nada pude me lembrar
Que dia era e também em qual lugar
Desci à rua e fui valente passear
Sem vigia, sem remédio e sem tédio a cantar

Mas as esquinas estavam fora de lugar
Fui ao cinema ler um livro e dormi
Na livraria vi um filme de chorar
Lembrou alguém, algum amor que eu esqueci

Fui atrás de um vira-lata desgraçado
Desses que sabem exato aonde querem chegar
E de repente com meus olhos tão cansados
Embaçados, malcriados, dei de cara com o mar

Fui mergulhar sem lembrar se sabia nadar
Mas tudo bem, pois me esqueci de me afogar
Parei no quiosque pra poder me refazer
A minha pele a derreter, perante o sol, perante o mar

Agora quero o meu amor visitar
Será preciso viajar pra outro país?
Será que mora bem juntinho o meu par?
Será um lar, pra gente amar e cozinhar e ser feliz?

E o meu filho por onde andará?
Se já nasceu, se já morreu, se vai casar
Será mesmo esse filho, filho meu?
Será de Deus, algum ateu, e como eu, alguém sem lar?

Uma moça de branco diz que veio me buscar
Não é minha noiva, vai ter que se identificar
Parece ciumenta e cheia de blá blá blá
E blá, blá, blá e blá, blá, blá, ela diz ser minha babá

Mas essa noite minha amada vai chegar
Promessa que ela me fez em algum altar
"Antes que a morte nos separe eu vou voltar"
"Hei de voltar" e blá blá blá, mais um calmante pra apagar

Vem (Agostinho Fortes)

Eu lhe dei rosas e belos vestidos
Fiz poesia falando da gente
Fiz um disco para os seus ouvidos
Dei uma camisola transparente

Vem, vem, vem, vem

Murcharam as rosas, arranhou o disco
Você não quer ouvir falar da gente
E diz que eu sou um cara de alto risco
Que levo uma vida indecente

Larguei bilhar e o carteado
E a mulata que mora em frente
Por uma vida pra sempre ao seu lado
Prometo nunca mais ficar contente

Vem, vem, vem, vem

Mas vem logo que a vida passa
Impiedosa ela arrasa a gente
Enquanto no peito bater um samba
Eu sei que posso lhe fazer contente

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Estrela (Agostinho Fortes)

Quando a vejo na televisão
O meu coração se inflama
Parece que ela me chama

Atento à cena, não perco o momento
Nenhum movimento da dama
Prevejo a sua trama

Ela é só minha na minha ideia
E no coração
Não sei por que ela encena
Ser da multidão

Beija o galã como se eu não estivesse
Tomando conta da novela
Me trai sem me dar trela

Me encara e tira o vestido
Esboça um sorriso e me leva a paz
Pra ir com um outro rapaz

Ela é famosa, é estrela
Ela é demais
Será que ela me vê
Vendo tudo que ela faz?

Às vezes é má, às vezes megera
Às vezes até exagera
E mata um personagem

Faz mil caras e bocas, tem mil corações
Finge a voz quando canta
E meus males espanta

Ela me inferniza, me atiça
E não tá nem aí
Ela me tira a saúde
E parte pra Hollywood
Enfim

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Você me merece (Agostinho Fortes)

Você sabe cuspir
No prato que você
Se lambuza

Você briga comigo
Mas ri pro meu umbigo
E abusa

Sou mulher sem palavra
E a sua palavra
Eu contesto

Eu também não presto
E é por isso que eu
Te detesto

Vem e me tira a blusa
Me trai e me acusa
Que eu atesto

Esse amor sem vergonha
Que nem miserável sonha
Me aquece

Quando rezo, eu misturo
Meus pecados e os seus
Numa prece

Sou igualzinha a você
E por isso você
Me merece




quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Pobre Maria (Agostinho Fortes)

Pobre Maria que perdeu seu rumo
Seus sonhos e seu prumo
Quando enfim perdeu João
Pra uma outra Maria
Que agora dona da alegria
Explode de paixão

A alegria assim corria
De moça em moça escorria
De boca em boca sem parar
João transferia seu amor
E deixava uma dor
Pra outra se lembrar

João é qual um cirurgião
De delicadas mãos
Que com calma e fundo
Toca manso um coração
Arrancando a veia então
Do lugar mais profundo

João é qual um peão
Bravio de brutas mãos
Quando uma alma laça
Num só golpe exorciza,
Liberta e escraviza
Multiplicando a sua raça

João prometeu tantos mundos
Com seu coração sem fundos
E sua lábia de ladrão
Por onde agora anda João?
Pois nem mais no sonho de Maria
A gente vê mais não