quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Triste carmesim (Agostinho Fortes)


Eu sem você
Não tenho assunto
Mas sei que ainda
Estamos juntos
No pôr-do-sol
Triste carmesim
Trago as flores
Saudades sem fim

Eu sem você
Vivo a chorar
Dias sem fim
Noites sem luar
Pobre de mim
Que estou a esperar
A paz que, enfim
Virá me buscar

Você se foi
Sem mais, nem porquê
Meus olhos no mar
Aguardam lhe ver
Se a vida conduz
Sempre ao mesmo fim
Espero a luz
Que a levou de mim

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Luana (Agostinho Fortes)

Vem raio de sol
Vem bronzear meu corpo
Vem dourar os meus cabelos longos
Vem minha Luana
Me abrasa os lábios, cora minha face e ferve meus sentidos
Vem aguçar
A minha nuca, pele, pêlo, boca, seios e ouvidos
Minha Luana, estou tão linda

Vem raio de sol
Me dá a cor de um pecado
Que ninguém perdoa
A cor dos bichos
Que eu fico assim pagã mestiça à flor da pele e ávida de brasa
Minha Luana,
Eu fico aflita a te esperar sozinha nessa imensa casa
Minha Luana, seja bem vinda

Vai minha Luana
Que a cidade toda nos quer ver
Queimando feito bruxas
Foge Luana
Mal sabem eles que se a gente queima, a gente vai com os ventos
As nossas cinzas
Redemoinhos espalhando, derramando os bons momentos
Nossa alegria, nossa paixão tão proibida
Tão ilegal, tão infernal e destemida

Valiosa prata (Agostinho Fortes)


Ah,
Se minha mão tocasse a lua,
Se você quisesse que ela fosse sua
E ela coubesse na palma da mão

Quando chegasse o momento oportuno
Em que os astros desse céu noturno
Se distraíssem por qualquer razão

Eu furtaria a mais valiosa prata,
Me esconderia no meio da mata
Sob um céu vítima dessa paixão

Ah,
Quando acordei não era dia,
Não foi um sonho a minha covardia
De roubar em nome de um só coração

Arrebatei as noites de luar
Dos namorados, seresteiros,
Poetas e boêmios baderneiros
Pra um belo dia vir a maldição

E então,
O sol que sempre vinha atrás da sua amada
Ao perceber que fora sequestrada,
Nunca mais raiou pra gente não

Ah meu bem,
E se você ainda quiser a lua
Saiba ... que quanto mais longe, mais é sua
E mais perto fica do seu coração

A rosa do carnaval (Agostinho Fortes)


Essa boca mentirosa
Da Rosa, da Rosa
Sempre tão cheia de prosa
Que rosa, que rosa

Diz que eu sou o tal
Único e primeiro
Mas pra não levar a mal
Quando chega fevereiro

É que o carnaval
É a primavera da Rosa
Flagrei sambando no jornal
Seminua, a mentirosa

Chego até a passar mal
Vendo sua maldade na avenida
Distribuindo em poucas horas
Todos os beijos que lhe dei na vida

Essa boca caridosa
Da Rosa, da Rosa
Quarta-feira vem dengosa
Me goza, me goza

Eu choro samba (Agostinho Fortes)

 
Eu faço samba
Eu choro samba
Só pra me divertir
Meu tamborim que leva a vida
E não deixa a peteca cair

Eu faço samba
Invento um som
Faço de tudo e você não vem
Dizem as más línguas que você gosta de samba
E samba como ninguém

Chora cavaco
Chora a cuíca
Choro eu também
O meu samba há de entrar no seu barraco
E lhe fazer um bem

Eu faço samba
Invento um som
Faço de tudo e você não vem
Dizem as más línguas que você gosta de samba
E samba como ninguém
 

Doida (Agostinho Fortes)


Doida, dança no meio da pista
Pensa que é capa de revista
Encena, chora como artista
Artista, artista
E sai por aí sozinha na noite
 
A doida jura que é só minha
Verdade, mas sai por aí sozinha
Idade da filha da minha filha
Humilha, humilha
E sai por aí só minha, sozinha
 
É franca, mas gosta de fazer fita
Arranca meus olhos quando se irrita
Espanca, dá nó na minha veia
Estanca, estanca
E sai por aí faceira, ligeira
 
Vadia, na rua esquece o lar
Vampira, levou minha jugular
Revira sem dó as minhas mentiras
Que ira, que ira
E se manda vingativa na noite
 
Esperta, gosta de uma maré mansa
Perdulária, deu fim à minha herança
Hilária, me comprou uma lembrança
Não cansa, me cansa
E sai por aí fugida, bandida
 
A doida saiu por aí faceira
Artista, se mandou tão vingativa
Vampira, saiu por aí fugida
Ligeira, bandida
Mas voltou arrependida, vadia
A doida

A esperança dos dias (Agostinho Fortes)


Ah, que saudade daí
Ah, como o tempo passou
Conte alguma novidade
Que alivia a saudade
E distrai minha dor

Não, nunca vi nevar tanto
Combinou com o meu pranto
Com as areias da praia
Tudo ficou lindo e branco
E pra lhe ser bem franco
Eu até sorri
Me fez lembrar seu sorriso
Que foi meu maior aviso
Pra nunca sair daí

Ah, saudade dos meninos
Ah, saudade de você
Conte pra toda a cidade
Que eu chego num fim de tarde
Antes de escurecer

Hoje, só pensei em você
Rodei na Champs-Élysées
Com os seus olhos e sonhos
Comprei um perfume bacana
Ainda vai sobrar grana
Pra aquele paetê
Esse frio tá de morte
Que saudade do Norte
Como é duro esperar lhe ver
Trago as economias
E a esperança dos dias
Que um dia fui lhe prometer

Mãe guerra (Agostinho Fortes)

 
Súbito da guerra fez-se a paz
Ruínas gentis, cheiros de morte
Terrores sutis, calmarias mortais
Silêncios febris, sopro de sorte
Saudades violentas e gritos banais 
 
Súbito da paz fez-se a vida
Amáveis granadas inertes, tímidas fumaças
Angústias caladas e crianças retornam às praças
Mercados agitados, olarias perfumadas
Tijolo por tijolo vou vendo viúvas ouriçadas

Súbito do fim fez-se o início
Estúpido beijo da mãe guerra
Que beija o filho morto
E depois, deserda
 

Ela se descuidou (Agostinho Fortes)


Ela se descuidou
Não viu que palácios ruíam
Falésias comiam fronteiras
Se deslocando trépidas
Pelo mundo dela

Ela se descuidou
Não viu que seu tempo passava
O jardim que secava e as fogueiras
Que pairavam gélidas
Em torno dela

Ela se acostumou
Sim, com as noites sem sono
Na mesa dos ébrios
Com a vida sem sonho
No alto dos prédios

Seu tempo assim passou
Seu pranto, quebranto, encanto
Beleza e alegria
Ficaram com os homens 
De vida vadia
 
Quem sabe com eles
Foi feliz um dia 

Quereria (Agostinho Fortes)


Quereria o teu sorriso sorrir
Quereria o teu choro chorar
Quereria o teu sono dormir
E com o teu sonho na cara, acordar
Acontece que sou tão desigual
Por favor não me leves tão a mal

Quereria correr quando corres
Quando paras, ser o teu paradeiro
Quereria morrer quando morres
Quando nua, beijar teu corpo inteiro
Acontece que sou tão diferente
Não me leves a mal tão de repente

Mas se voas, às vezes rastejo
Quando ventas, sou brisa o ano inteiro
Quando és branca nuvem, relampejo
Onde esbanjas, eu conto dinheiro
Acontece que somos tão iguais
E eu sou mais tu além do mais

Quereria amar-te simplesmente
Sem querer o que queres ou não
Quereria ser louco e demente
Adorar o teu sim e o teu não
Acontece que furtivamente
Colocaste os meus pés no chão

Mundos (Agostinho Fortes)


Parti na madrugada
Com a lua no meu calcanhar
As estrelas sobre meus ombros, amor
Pareciam até duvidar

Andei por tantos mundos
Em busca de outra aurora
Que abrisse meus olhos fundos, amor
Qual raios de outrora

Dormi entre deusas e reis
Troquei pernas nos cabarés
Dancei num céu de estrelas, amor
Brilhei da cabeça aos pés

Ao me verem assim confuso
Demônios debaixo do mar
Anjos de todas as nuvens, amor
Quiseram minha alma levar

Querida, dá-me um sorriso
Preciso te amar já
Deixei o meu coração no teu peito
E agora eu vim buscar
 

Querida lua (Agostinho Fortes)

 
Lua, querida lua
Por vezes me falam de ti, assim, com seriedade
Da prata pura
Do astronauta que te pratica em treinamento
Dos calendários, telescópios, marés e seus movimentos
Da tua massa, circunferência e de teus elementos
Querida lua, verdade nua

Lua, querida lua
Outras vezes me falam de ti, assim, com poesia
Da tua cura
Dos que te miram em sofrimento, profecia e magia
De como flutuas na memória flácida de quem já amou um dia
Da cara incrédula e pálida de quem já te viu sombria
Querida lua, bijuteria

Lua, querida lua
Mas eu, como um bom poeta vagabundo, te exagero
Querida lua
Te prometo às donzelas, dou mil tons à tua luz
Só pra te por numa canção que compus
Pra um amor qualquer que finjo amar e não faz juz
A ti, querida lua, lua querida

Fera nua (Agostinho Fortes)


Ela foge por vãos e labirintos
Mas seu rastro não se desfaz
Vou atrás com meus olhos tão famintos
Com a fome e a fúria dos animais

É afoita, ligeira e arisca
Na mata escura ela se disfarça
Fora de sua toca não se arrisca
Indomável é a sua raça
 
No escuro posso sentir seu cheiro
Me aproximando com punhos fortes
Ela mostra seus dentes e desespero
Ameaça me dar um bote

Num só golpe me puxa e expulsa
Retrai, impulsa e não se cansa
Seu grito doido de aflição e alívio
Prazer rasgando a sua garganta

Já não demonstra medo do seu senhor
Seu corpo se agitando selvagem
Seu suor correndo em minha boca
Quente de medo e coragem

E quando enfim seu corpo se aquieta
Seus olhos miram o infinito
Sua boca esfriando entreaberta
Rosna mansa o seu instinto
 
Domada pelo seu caçador feroz
Fez dele seu amor, presa e algoz
Fera nua, meu bicho do mato
Foge de novo que eu lhe cato

Ode ao Rio (Agostinho Fortes)


Andar por todo esse Rio e ver
As cores de um mar sem fim
Gaivotas tresloucadas
Perfuram feito espadas
O azul do mar que sangra em mim

Andar por esse Rio e não perder
Meu olhar bobo de turista
Vendo as praias e os mares
A vida sentada nos bares
Na orla me perder de vista

Orar e xingar na catedral do gol
Fla-Flu faz a terra tremer
Vi meu sonho na Sapucaí
Da Pedra da Gávea eu caí
Na Lapa vai amanhecer

Trocar de catedral embriagado
Ver em cores a Sapucaí
Gaivotas no fla-flu
Espadas a cair
No mar que sangra azul
Turistas por aí
A Lapa vai tremer
Um gol pra divertir
Na orla amanhecer
O Rio que é aqui
Sobre a Gávea então voar
Voar até cair
Os bares na tv
Acho que já vou dormir

Ladrão poeta (Agostinho Fortes)


Eu sou mesmo um bom ladrão que ama
E que rouba dos poetas
Suas mentiras, os seus versos e paixões
E dos infelizes, fantasias
Poesias de ilusões

Roubo de outras vozes melodias
Estribilhos e emoções
E assim faço minhas, sempre minhas
As minhas próprias canções

E as notas dos instrumentistas
Borboletas suicidas
Caem assim nas minhas mãos
Mortas na canção
E faço uma canção

Eu sou mesmo um bom ladrão que ama
Quem me dera eu roubasse
Bem assim teu coração
Me dá o teu perdão
Que faço outra canção

Eu sou mesmo um ladrão fajuto
E que pra roubar teus olhos
Faço cena de um filme que gostei
Eu sou mesmo um poeta que ama
E pra sempre te amarei
 

Ode ao Rio - versão 2 (Agostinho Fortes)

Ando no Rio
Respiro as praias, as saias e os mares
Vejo a vida sentada nos bares
Feliz

Subo ao Cristo
É como se jamais tivesse visto
Meu olhar de turista a pasmar
Feliz

Ando no Rio
Bebo o Cristo, as saias e os mares
Meu olhar confundindo nos bares
Paris

Iara (Agostinho Fortes)


Foi um quebranto, mandinga ou encanto
Que me acometeu
Eu na beira do rio e ela sorriu
Era só ela e eu

Deu-me a boca, beijou-me louca
E desapareceu
Passei a ver e só eu que via
Gente que já morreu

Vi criaturas, fogo nas alturas
Ao lado de um serafim
Jurupari entrou no meu sonho
E o sonho não tinha fim

Vi Iara espalhando seu mais lindo canto
Seu chamado sedutor
Vi, em seus braços, pobre e feliz
Um jovem pescador

Naquelas águas, na calmaria
Vi morte e amor
Mula sem cabeça, antes que eu me esqueça
E a Cuca me pegou

Matita Perê, sei, ninguém vai crer
Mas ouvi assobiar
Numa rajada de vento na cara
Saci sabe assustar

Sumiu meu fumo, sumiu a pinga
Até mesmo o meu alento
Vi as pegadas de Curupira
Sumindo mata adentro

Boitatá me cegou, nem vi, me queimou
E o boto rosa a dançar
Deixou as raparigas cheias de barriga
Roubou até o meu par

Mas certa noite a lua veio
Pra tudo alumiar
De tal maneira que toda a cidade
Enfim se pôs a cantar

Sumiram fantasmas, voaram as bruxas
Comeram-se os canibais
Não sei explicar, mas tais criaturas
Nem eram meus rivais

Foi assim que perdi a velha mania
De nunca, jamais crer
No que claramente, bem claramente
Meus olhos não podem ver

Então vi mais fundo, vi mais o mundo
Mais lindo e muito mais
Vi o amor, seu cheiro e cor
Enfim minha fé em paz

Bendita mandinga, bendito quebranto
Que me acometeu
Bendita Iara, seu beijo e canto
Bendito seja Deus

Artista do sinal (Agostinho Fortes)


Mora no Vidigal
Ensaia um mortal
Faz mil malabarismos
Artista do sinal
Brinca no asfalto
Com a bola, dá caneta
Encena um assalto
E arrebata uma preta

Se hospeda em Bangu sem querer
Não larga o celular, quer vender
Inventa um motim e organiza a nação

Foge da polícia
Já tem até família
O barraco tá pequeno
A nega é uma delícia
Serve no Vidigal
Vai buscar um papel
Sentinela ligado
Vigiando o quartel

Se hospeda em Bangu sem querer
Não larga o celular, quer vender
Inventa um motim e organiza a nação

Se hospeda no Cajú sem querer
O luto vai passar na tv
O morro chora assim, sem consolação


Ali defronte (Agostinho Fortes)


No rio ali defronte
Toda a correnteza corria
Todos os peixes havia
No rio ali defronte

E o velho, cá do alto do monte
Na sua cadeira de balanço que rangia
Com seus olhos marejados de vigia
Admirava o rio ali defronte
 
Lá, toda rede se lançava
Todo parto se fazia
Toda sede se matava
Batizados, noite e dia
 
E o velho via cá do monte
Toda moça que se banhava
Também a roupa que se lavava
Naquele rio ali defronte
 
Um dia, o velho do alto do monte
Não mais veio à sua varanda
E ninguém sabe por onde anda
O vigia, que vivia ali defronte
 
E, então, o rio secou
Reza a lenda que as lágrimas do velho
Eram do rio a fonte
Aquele rio que não tinha margens
Muito menos ponte

Um rio que vinha não sei de onde
E que só no sonho do velho existia
Pois nem eu, nem ninguém sabia
Que aquele rio ali defronte
Era o rio das saudades
Das saudades de uma vida
Que vivia lá no monte
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Quando eu toco (Agostinho Fortes)

Quando eu toco, arrebento
As cordas do violão
Quando eu choro, eu inundo
Quase todo o sertão

Quando durmo, só acordo
No final do verão
Quando eu bebo, eu me afogo
Ressurjo na embarcação

Quando eu beijo, eu aspiro
O som do teu coração
Quando eu calo, nem suspiro
Se ouve na escuridão

Quando eu amo, eu me caso
E rasgo meu coração
Quando odeio, estilhaço
Rezo e peço perdão

Quando eu brigo, sai de baixo
Quem não for meu irmão
Quando eu canso, eu disfarço
E canto outra canção

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Ciumenta demais (Agostinho Fortes)


Ciumenta demais
É capaz de por fogo em toda a cidade
Só pra ver queimar supostas amantes
E a gente fugir feito dois retirantes

Delira demais
É capaz de me ver onde nunca estive
Atrás dos cenários, amando as atrizes
Amando mundo afora e esquecendo países

Imagina rapaz
Se o que ela imagina fosse verdade
Eu entre sereias sobre conchas e seixos
Descobrindo as Índias, escambando beijos

Mas ela não sabe
É que só tenho um desejo de amá-la demais
Além do que vejo, além das atrizes
Apesar do mundo e de todo cenário
Além das sereias e além dos países
Além dos infelizes e do imaginário
Além do além e além e além ...

Era ela (Agostinho Fortes)


Era ela na tela
Não sei
Acho que ninguém viu
Fui eu que sonhei
Mas ela sumiu
Mais uma vez

Não conheço sua voz
Mas gostei
Um papo que não se ouviu
Será que só eu que falei
Ou ela sumiu
Outra vez ?

Ela está longe
Eu bem sei
Mas por essa janela
Arremesso meus olhos nos dela
Será que ela esquiva ?
Talvez

E quando toquei o seu rosto
Ele se desfez
Entre meus dedos
Então escorreu
E num chão de nuvens
Perdi sua tez

Será que foi alguém ?
Será que foi aqui ?
Ou será muito além ?
Será que foi um trem ?
Só sei lhe dizer
Que o que ela me fez
Me fez tão bem
 

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Nos perdemos (Agostinho Fortes)

 
Tem mais rio no sertão
Que amor no seu coração
Tem mais sol em Moscou
Que nas suas mãos
Tem mais vida lá fora
Que aqui dentro de nós
Meu amor, vou embora
Vou soltar minha voz
Nosso laço afrouxou
Apertaram-se os nós
Meu amor, onde foi
Que nos perdemos de nós ?
Em Veneza, Toronto
Em Paris ou Berlim
Será que foi em você
Ou foi dentro de mim ?

Bom velhinho (Agostinho Fortes)


A vida toda
Ele não se entregou a ninguém
Nunca soube do espinho da flor
Só dos frutos do amor
Que no sonho ele tem

Nunca arriscou
Brincar com fogo
Tampouco desrespeitou
As regras do jogo
Não correu o mundo
Seu mundo parou
Nem mergulhou fundo
Só respirou

A vida toda
Ele não se rendeu a ninguém
Nunca soube do punhal no peito
Só do amor perfeito
Que no sonho ele tem

Sempre guardou
O seu coração
Por medo, vergonha
Ou precaução
Por nenhuma dama
Ele adoeceu
Se ficou de cama
Foi que o time perdeu

Ao fim da vida
Lamenta que pouco se deu
No derradeiro olhar, mira a flor
Para cravar o espinho
Mas já não sente a dor
O velho foi sozinho
Sem carinho e flor
Sem punhal, sem espinho
Sem fogo, sem amor
Lá vai o bom velhinho
Sem carinho e flor

A bailarina (Agostinho Fortes)


A bailarina, que linda
Soberana, estonteante
Passeia no palco
Mil luzes a cada instante

Passeia e leva os olhos
Dos olhos leva o choro
Com o choro, lava o palco
E nasce um palco de ouro

Um salto que marca a retina
E espeta o peito de quem se fascina
Até que os aplausos exaustos
Acordem do sonho quem já se alucina
E o tombo sutil da majestosa cortina
Leve embora a nossa ilusão bailarina

Buscando as raízes (Agostinho Fortes)


Ele chegou com saudade no peito e dinheiro no bolso
Como prometeu, regressou pra onde vivera até moço
Já tinha asfalto, pouca poeira, iluminação
Custou a reconhecer até o próprio irmão

Aquela linda mulher que sempre o esnobara
Ofereceu-lhe a mão e o corpo logo de cara
O cego da praça que parecia nunca ter visto a luz
Ao ver aquele homem chegando, fez o sinal da cruz

O dono da venda que nunca lhe vendera fiado
Lhe mandou cigarro, uísque sem cobrar um trocado
E de quebra inda lhe mostrou a filha todo sorridente
Parecia expor um produto do qual tinha a patente

O delegado que odiava até ladrão de galinha
Fez vista grossa pro negócio dele que era farinha
Mas era farinha seleta e de cor muito branca
Da Bolívia que vinha e saía pela Zona Franca

O padre que lhe penitenciara por mil sacrilégios
Teve a sua visita na igreja como um privilégio
Ele chegou buscando as raízes e agora partia
Partido pela raiz, murcho de hipocrisia
 

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Tem coisa pra me acontecer (Agostinho Fortes)


Perdi meu carro, o cigarro, a mulher
E um pigarro a me aborrecer
Será que inda tem coisa pra me acontecer ?

To me mudando pra um ap apertado, alugado
Esquina da Duvivier
Será que inda tem coisa pra me acontecer ?

To meditando, rezando, prometendo
Nem sei bem mais o que
Será que inda tem coisa pra me acontecer ?

Fui pegar alguns trapos na casa da ex
E meu cachorro tentou me morder
Isso jamais pensei que fosse acontecer !

Quando cheguei hoje cedo ao trabalho
O chefe disse: foi bom te conhecer
Será que inda tem coisa pra me acontecer ?

Da ponte Rio-Niterói
Dar um pulo que é bonito de ver
Qualquer dia vocês vão me ver na tv

Se mamãe ou alguém peguntar onde está
Vocês podem dizer
Foi dar um mergulho pra se refazer

E se querem saber se algum dia, uma noite
Vocês ainda vão me ver
Aqui no fundo do mar só vendo pra crer

Joana do mar (Agostinho Fortes)

 
Lembrei-me de Joana
Que lembrou a brisa
Que lembrou a praia
Que lembrou o mar
Que lembrou a vida
Boa de levar

Lembrei-me de Joana
Que lembrou suplício
Que lembrou naufrágios
Que lembrou o mar
Que lembrou a vida
Boa de chorar

Não fala de Joana
Que lembra João
Que me levou Joana
Pra nunca mais voltar

Pra esquecer Joana
Lembrei-me de Maria
Que até outro dia
Só fazia me amar

Mas até Maria
Me lembra Joana
Que João deixou
Pra nunca mais voltar

Súbito esqueci
E quem há de lembrar ?

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Sonhei (Agostinho Fortes)


Sonhei que o gringo sambava
Sonhei que o gato latia
De tanto sonhar besteiras
Ai, jamais acordaria

Esbravejavam à margem
Independência ou morte
Eu seminua na moita
Esbravejava mais forte
Olha que sorte

Vi chovendo pra cima
E o mar correndo pro rio
E por sonhar ao contrário
Me deu calor sentir frio

Numa sinfonia muda
Com violinos sem corda
Alguém da plateia surda
Me disse, amor
Vê se acorda

Sonhei um belo banquete
Suas vadias servindo
Suas entranhas na mesa
Eu devorando e rindo

Sonhei que meu casamento
Seguia de vento em popa
E acordei com você
Ai, me lembrando de passar roupa

Delicada (Agostinho Fortes)

Ela chegou tão delicada
E de forma cativante
Talvez por ser em vida aterrorizante
 
Ela chegou altiva e acenava
Como se fosse esperada
Talvez por ser em vida tão ignorada
 
Ela chegou como um acalanto
E o fez adormecer
Não lhe causou espanto
Nem o fez sofrer
 
Lhe pôs as mãos nos ombros e lhe disse em voz contida
Dá aqui a tua mão que estamos de partida
A carne enferma não te serve mais de moradia
Eis enfim a paz que em vida nunca encontrarias
Eis enfim as honras póstumas que em vida merecias
Eis enfim o frenesi dos vermes em orgia

Não faça não (Agostinho Fortes)

Meu bem, meu bem
Por favor
Um pouco menos da sua atenção
Meu amor, qualquer favor
Não faça não
 
Meu bem
Pra que flores todos os dias ?
Não sabe que se a gente vive entre as flores
E com o corpo perfumado de jasmim
Vai ao deserto por saber que lá não há jardim ?

Meu bem
Pra que tanta educação ?
O seu silêncio atrapalha a confusão
O seu incêndio mal assusta um barracão
E sua conversa é mais reta que um sermão
 
Meu bem
Pra que tantas ligações ?
Pra que mais de um bom dia todo dia ?
Pra que meu nome em todas as suas orações ?
E esses carinhos que nem deixam arranhões ?
 
Ai, meu bem
Tanta alegria, que me dá azia
Seu amor incondicional me faz vazia
E ser assim tão pontual em cada encontro
Faz de cada hora e minuto um confronto
 
Meu bem, ai meu bem
Cuide sem cuidar
Faz como a chuva faz com a flor
E o mar, com o pescador
Que é pra que um dia eu lhe tenha amor
 
Meu bem, meu bem
Por favor
Um pouco menos da sua atenção
Meu amor, qualquer favor
Faça não

Acabou (Agostinho Fortes)


Hoje não quero caminhar
Nem ver os amigos
Pois se vou falar
Só maltrato os ouvidos
Chicoteio o mundo com esse sofrer

Hoje vou dar as costas pro mar
Vou fechar as cortinas
Vou dormir e rezar
Preces tão repentinas
Pra nunca mais ter que amanhecer

Acabou o amor e a alegria
Foi bom, mas me arrasou
Será que ainda vou amar alguém ?
Esse amor que é meu e me agonia
Nasce e morre sem guardar rancor
Será que amanhã será hoje também ?

Acabou o amor e a alegria
Foi ruim, mas me agradou
Em outro amor, me vingo do meu bem
Esse amor que é meu e me alivia
Se perpetua seja em quem for
Amanhã esse amor estará em alguém

Leblon (Agostinho Fortes)


Recordo de um tempo
Sol morno na praia
O beijo, o Leblon
O vento, a saia
Mas como era bom
Todo dia aquele nosso amor
As nossas risadas
E as caras de pavor

Será que te ligo
Ou te espero na esquina
Será que ainda
És minha menina
Ou será que és
Uma mulher muito feliz
Ao lado de alguém
Que fez o que eu não fiz

A noite me chega
Me dura um ano
Ainda bem cedo
Acordo insano
Arrisco uma carta
E já me vejo um perdedor
Será que estás farta
De palavras de amor

Só quero que saibas
Que foste meu plano e trama
Hoje sou avidez
Nos leitos das damas
Quem sabe em um deles
Te encontro afoita e doida de calor
Quem sabe faremos
As pazes sem pudor

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Coisa da tua solidão (Agostinho Fortes)


Brinca, se arruma, delira
Em seu guarda-roupa, qualquer fantasia
Gira querendo perder o sentido
A cada giro um outro vestido

Ela se odeia, se ama, se encanta
Repassa o batom no tom mais vermelho
Até que seus lábios só queiram beijar
Sua boca impressa por todo o espelho

Encharca-se com o melhor perfume
Estilhaça a janela pra não sufocar
Despertando nas rosas, ciúme
No beija-flor, a vontade de entrar

Prova todos os pares freneticamente
Até que um passo se mostre perfeito
Lança-se travessa pela escadaria
E se despeja nua na noite mais fria

A rua te espera
Deserta, impiedosa
E aquele alguém que ontem te fez mulher
Hoje nem sequer
Uma ligação
Pode esquecer e sofrer
Que foi tudo coisa da tua solidão

Mangue (Agostinho Fortes)


Sangue, tanto sangue
Como a lama do mangue
Me toquei e era sangue
Tive medo de ver
O caranguejo do mangue

Assustei, pensei que fosse um corte
O prelúdio da morte
Mas era algo mais forte
Era arte
Um véu escarlate
Cobrindo-me a parte
Desfiando até o chão
Era eu com medo de mim
Era eu em erupção

Era eu que nascia
Em forma de amor
E agora podia acolher
O milagre da vida
Em meu interior
Depois daquele dia
Todo mês mancharia
Já me chamo mulher
Qualquer dia dou cria

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Não tem perdão (Agostinho Fortes)


Ela amou nos palácios, nos barracos, nos vãos
Ela lavou seus pecados e homens com as próprias mãos
Ela amou teu vizinho, amiga, pai e irmão
E arruinou-se nas camas, deleitou-se nos chãos
Não tem perdão

Ela bebeu as noites, cambaleou nas sacadas
Ela morreu, renasceu, seu vulto pelas escadas
Muitas caronas e filhos inesperados na estrada
Muitos vestidos cafonas, esmerados, pelada
Não tem nada

E eu que já blasfemei, hoje aclamei minha santa
É boa dona de casa, melhor ainda de cama
Mudar de vida e partir, eu sou sua salvação
Ou quer só morrer de rir, ela é minha perdição
Não tem perdão

Agora como no prato que um dia cuspi
Agora beijo as feridas que eu mesmo feri
Não falo mal do inferno, nem das meninas dali
Domingo, igreja, terno e missa pra nos remir
Deus perdoe

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Mundo moribundo (Agostinho Fortes)

Vão devastar Bagdá
Dizem ter bomba por lá
Vão fuxicar a mesquita
Chamar de gente esquisita

Genética muda o que pode
A ética é muda e sacode
A soja tá tão diferente
Já querem clone de gente

Vai acabar moribundo
Num relutar derradeiro
Vai acabar sujo imundo
Vai se acabar, mundo inteiro
Vai se sujar, vai se estrepar

Nunca vi arara azul
Chegou tornado no Sul
Em Angra fizeram usina
Sem represar, coisa fina

Um bêbado profetizou
Cachaça vai acabar
Desgraça pra quem ficar
Água pra quem bem pagar

Vai acabar moribundo
Num relutar derradeiro
Vai acabar sujo imundo
Vai se acabar, mundo inteiro
Vai se sujar, vai se estrepar

domingo, 2 de novembro de 2014

O samba dá (Agostinho Fortes)


A gente não cansa da luta
A gente só faz lutar
Lá de longe se escuta
Que as coisas vão melhorar

A gente faz samba e careta
Pra toda a mutreta que há
A gente só quer respeito
Que o resto o samba nos dá

A gente faz samba e serão
Não deixa o barco virar
No mar da desilusão
Quem samba sabe nadar

sábado, 1 de novembro de 2014

A tua companhia (Agostinho Fortes)


Pra me curar de uma orgia
Da bebedeira, do carnaval
E me despir da fantasia
De qualquer mal
Me basta a tua companhia
A tua simples companhia

Pra expulsar essa vadia
Que vagueia na minha cuca
Pra amordaçar minha agonia
Exorcizar a minha culpa
Me basta a tua companhia
A tua simples companhia

Pra me retalhar em mil pecados
Fazer brigar os meus dois lados
E ver jorrar pra todo lado
O que corre em minhas veias camuflado
Basta a tua companhia
O teu abraço, o meu regaço
Bastaria

Falsas palavras (Agostinho Fortes)


Sou das palavras
Falsas palavras
Palavras ao vento
De areia, de nuvens
Sou da boca pra fora
Palavras por dentro

Sei que gostas das palavras que te sirvo
Feitas da madrugada, dos dentes rangendo
Palavras órfãs ecoando, dialeto dos corpos 
Palavras de pele nas línguas tremendo

Sou das palavras
Que não são minhas
Que arrebatam suspiros
Rondando ouvidos
Só pra ver teu ciúme
Só pra ser teu bandido

Bem sei que gostas das palavras com dor
Que do triste fazem o belo e pintam a cor
Palavra encharcada, palavras falsas
Boiando em teus olhos assim como balsas

Sou das palavras
E elas são minhas
Minha afiada língua
Sou sem palavra
Da conversa fiada
Das coisas banais e lindas

Aprendo palavras difíceis e raras
Depois as esqueço nas tuas coisas
Nos teus pensamentos e na tua voz
Pra a qualquer momento, lembrares de nós

Olha aí (Agostinho Fortes)

Olha aí

Lembro da atiradeira certeira
Fazendo alvoroço no matagal
Da bola encrenqueira, festeira
Levando vidraças qual um vendaval
Da manga, da pitanga
Degustadas no quintal
Do doce da vida na boca
E a boca da vida seria fatal

Olha aí, olha aí

Olha aí, que o tempo voa e não volta não
Olha aí, presta atenção
Olha aí, acerta os ponteiros do teu coração
Que já é hora de verão

Lembro do medo de escuro
Do pulo do muro, da cara no chão
Do primeiro beijo molhado
Da primeira saia cobrindo-me a mão
Do primeiro carro
Da primeira contramão
Da primeira moça bonita
Que tirou um tasco do meu coração

Olha aí, olha aí

Olha aí a cor, o cheiro e a flor da estação
Olha aí, presta atenção
Eu às vezes tenho a estranha e leve impressão
De já ter visto este verão

Vai Brasil (Agostinho Fortes)


Vai meu Brasil
Leva teus sons e teus tons geniais
Mostra teus tambores, tuas cores
Faz o mundo sambar

Meu Brasil de verdes mil
Leva teu calor além mar
Mostra a tua mata e não deixa matar
Leva a natureza ao altar

Vai sem pudor
Leva em nuvens as mais belas morenas
E larga a chuva proibida da volúpia 
Sobre as terras mais inférteis e serenas

Cuida de teus rios
Deixa que cheguem ao mar
Deixa o cheiro da tua terra espalhar
E assim, toda a paz que levares ao mundo
A ti voltará


 

Madame vai me trazer confusão (Agostinho Fortes)


Pois é
Eu vou te contar
Conheci a madame lá no bar
Ela chegou cheia de prosa
Me abriu um sorriso e se fez de rosa

Espera, cautela
Não vai na dela, meu irmão
Madame vai te trazer confusão

Até
Tem mais pra contar
Ela me levou a uma ópera
Tanta gente gritando e tanta discórdia
Não tinha pandeiro, só gente sóbria

Loucura, me cura
Ninguém atura, meu irmão
Madame vai me trazer confusão

Pois é
Depois no jantar
Era tanto talher, tanto caviar
Eu queria cerveja, traz a calabresa
Deixa só uma colher sobre essa mesa

Loucura, me cura
Ninguém atura, meu irmão
Madame vai me trazer confusão

Mané
Depois já no lar
Ela disse que iria me mostrar
Perdeu a pose, foi-se a nobreza
Me jogou na cama sem delicadeza

Segura, maluca
Agora não tem volta não
Madame já me trouxe confusão

Sem você (Agostinho Fortes)


Sem você
Como serei eu sem você ?
Ah, isso eu não sei dizer
Sei que não vai ser fácil
Não vai ser dócil o viver

E mesmo que eu me junte a um novo amor
Como poderemos nos amar
Sem uma vida pra recordar ?
Não veremos um passado
Não teremos um retrato
Nem algum rastro deixado
Por aí

E quando eu quiser rever as fotografias
E minhas mãos caírem frias
Que outras mãos virão me acalorar ?
Vou ter que aprender a viver a vida
Como se ela fosse uma volta sem ida
Eu voltando de nenhum lugar

Vamos atrás do bloco (Agostinho Fortes)


O mundo em pé de guerra
E uma bomba perdida pode cair aqui
Vamos atrás do bloco
Cantar e beber até cair
Vamos nos beijar
Nos lamber
Nos roçar
E morrer de rir
Minha casa hoje é a avenida
Esquece da vida
E vamos seguir

O Talibã, amanhã
Pode não se convencer e nos explodir
Então brindemos a paz
O amor e o aumento que não vai sair
Hoje tu és salafrária
És ninguém
Ordinária
Esquece de existir
Chuta o teu sofrimento
Outro pé no tormento
Que o bloco tá aí

Lá vem o poeta (Agostinho Fortes)


Horizonte almejado
Quando não alcançado
Adormece sob o pranto
De nuvens escuras e ventos tiranos

Por isso deixem soltas as feras
Entre utopias, quimeras
Deixem nascer a idéia
Sem regras, nem métrica
Deixem-na simplesmente eclética

Um dia foi barro molhado
Hoje, escultura querendo falar
E não é o fim em corpo concreto
E sim um começo, sem forma nem teto
Pois o poeta já tem outra meta
Saiam da frente, saiam da reta
Saiam da frente, lá vem o poeta

Natal (Agostinho Fortes)


Mas que noite bonita !
A casa toda enfeitada
Quase ninguém acredita
Família toda abraçada
A molecada brincando
Na mesa é tanta comida
Tem gente até se esbaldando
Outros lamentando a vida

Hoje cada criança
Dormirá sem vontade
Pra ver debaixo da cama
Amanhecer novidade
Será que toda gente
Espera o mesmo velhinho ?
Alguns esperam fortuna
Outros preferem carinho

Mais um dia (Agostinho Fortes)

O que eu falo já não lhe desatina
Quero ver a cor que tinha o seu coração
O que eu lhe canto, hoje, desafina
Quero ouvir o som que tinha o meu violão

Não quero mais cair na rotina
Ai que medo que eu tenho desse baião
Prefiro você ave de rapina
Voando baixo num rock no salão

Prefiro você bem menina
Sapeca e com má intenção
E se você apronta na surdina
Nem imagina como isso é bom

Mais um dia
O mesmo trânsito, outros carros
Um café, outros cigarros
E o seu beijo vem vão

Mais um dia
E traz o tempo de uma vida
E a vida dura o tempo
Que dura um coração

Falar de amor (Agostinho Fortes)


Não me queira ver falar de amor
Não seria natural
Não traduziria o bem
Nem revelaria o mal

Não me queira ver falar de amor
Seja lá como for, dissimularia a dor
Não confessaria todos os pecados
Que por Deus já estão perdoados

Mas se algo eu lhe disser
Que soe como vier
Que não sejam versos meus
Já que é concebido por Deus
E que esteja em minha voz
Tudo que já habita em nós

Ciúme (Agostinho Fortes)


Tão devassador
Com tantas desmedidas
Meu amor assim chegou
E ancorou na minha vida

Remexeu o meu passado
Derramou a minha bebida
Humilhou-me um bocado
Trouxe à tona as feridas

Maldiz dos meus velhos namorados
Muito mais do que eu mesma poderia
Duvida do meu choro
Suspeita da minha alegria

Ele morre de ciúme do meu passado
Presente e futuro
Não sei mais o que lhe confesso
Nem sei mais o que lhe juro

Ah, se ele soubesse que se eu pudesse
Lhe entregaria as minhas preces
Meus segredos e meus sonhos
Como se fossem as minhas vestes

E assim talvez
Ele percebesse de uma vez
A minha alma desnuda
E viesse ao encontro meu
Suplicando por ajuda

Meu amor, coitado
Me ensina e me vê
Aprendendo a mentir
Aprendendo a viver

A voz do menino (Agostinho Fortes)

 
Às vezes a gente desanda
E quer desistir ou morrer
A alma então se desarma
Deixando a dor se estender
Então vem a voz do menino
- Eu quero brincar com você !

Bola, soldado, botão, pirraça
Peteca, doce, cinema, praça
E o sorriso do menino
Encheu meu peito de graça

A gente rala à beça
Rebola, se esfola e atola
A gente faz muita promessa
Pra no fim do mês ver esmola
Então vem a voz do menino
- Papai, olha o que eu sei fazer !

Bola, soldado, botão, pirraça
Peteca, doce, cinema, praça
E o sorriso do menino
Encheu meu peito de graça

Ninfeta (Agostinho Fortes)


Ela aparece cheia de graça
Cheia de tranças, de meia, pijama
Menina travessa, por que me chamas ?
 
Eu não dou trela, por mais que ela faça
Mas ela espera aquele segundo
Que os olhos vacilam e olham bem fundo
 
Ninfeta, não tenho sonhos pra ti
Tu nem suspeitas, mas já fui rapaz
Procura o teu sonho e me deixa em paz
 
Atiça, se esconde e se mostra
Alisa os seios e me vira as costas
Escapa dos braços, nas pernas me enrosca
Parece que brinca de me enlouquecer
É hora de criança dormir, já vai amanhecer !

Bate-bocas (Agostinho Fortes)


Deve ser bem melhor
Falar-te baixinho
Ao pé do ouvido
Bem devagarinho
Do que olhar-te de soslaio
E sair meio cambaio
Dos nossos bate-bocas

Deve ser bem melhor
Perder pra ti na discussão
Mas ganhar teu coração
Abrasar os teus lábios
E deixar a razão para os sábios
Que nada sabem de nós
 

Feliz ano novo (Agostinho Fortes)


Desejo-te um feliz Ano Novo
Que todo ano que venha, seja novo
De novo, de novo e de novo

Desejo que dances uma valsa
Que andes descalça
Que ganhes um belo vestido
E quem sabe, um beijo atrevido
Que ao teu lado
Bata um coração comovido
De uma boa companhia
E que teu fado
Seja feito a poesia
De Vinícius, de Tom
De Chico ou Drummond

E que se não veres graça
Em mais um ano que passa
Por favor, não chores
Pois mesmo que demore
O sol de um novo ano
Iluminando um novo plano
Há de brilhar pra ti

Ah, quereria eu ser o larápio
Que todo dia te traz brilhantes
Em tuas mãos, pôr um cardápio
Com mil flores cativantes
Seria só escolheres uma
Que eu traria num instante

Ah, quereria te furtar o Ano Velho
Ter te conhecido um tempo antes
Pra ver o bem que já te fiz
Estampado em teu semblante
E assim seguir ao lado teu
Pelo tempo que vai distante

Seu lugar (Agostinho Fortes)


Nenhuma mulher terá seu cheiro
Um cheiro que só eu sabia cheirar
Nenhuma mulher terá seu jeito
Um jeito que só eu sabia ajeitar
Nenhuma mulher terá sua tez
Uma tez que só eu sabia corar
Nenhuma mulher me trará de volta a vida
Pois isto seria tomar seu lugar

Teu malandro (Agostinho Fortes)


Te cato
Me farto
Te largo
Tanto te maltrato
Que chego a cansar
Te faço de gato e sapato
Te deixo um bagaço
Tens que suportar
 
Te nego
Me cego
Me calo
Te deixo de lado
Até cozinhar
Te boto no colo, descolo
Teu corpo da alma
Pra que possas sonhar
 
Te quero prosternada
Ao meu lado, acanhada
E pedindo por mais
Sou o teu malandro
És a minha mulher
E vivemos em paz
 
 

Cachaça com saudade (Agostinho Fortes)


Misturo cachaça com saudade
Repouso no colo o meu violão
Sai uma poesia meio sem vontade
Lembrando os amigos e alguma paixão

Meu Deus, sei não
Sem tristeza não nasce a canção
Meu Deus, sei não
Sem dor não existe paixão

Será que a dor vem do Senhor
Ou veio antes de toda a vossa criação?
Até uma vida já nasce com dor
A mulher que o diga, dizei-me então!

Meu Deus, sei não
Sem tristeza é triste a canção
Meu Deus, sei não
Sem dor não existe paixão

Teus olhos (Agostinho Fortes)


Se soubesses como espero
Como quero a tua atenção
Não chegavas tão exausto
Tão calado e tão sem razão

Se soubesses como sofro
Por viver assim sem fantasia
Reparavas no vestido novo
No cabelo, na minha agonia

Sei que andas com outras tantas
Torto e morto de bar em bar
Por saberes que sempre voltas
Pra quem sempre está a te esperar

Não me faltam elogios
Que na tua voz não são ditos
Não me faltam olhos alheios
Mesmo os seus sendo os meus favoritos

E se, às vezes, me desejas
Num bravo impulso de amor
Eu desato os cabelos
Perguntando-me se é por favor

E depois da nossa cama
Sei que tudo volta ao normal
Vais reclamar da comida
Perguntar onde está o jornal

Eu disfarço toda a dor
Tão zelosa dos caprichos teus
Só queria um instante
Dos teus olhos no fundo dos meus
Lá no fundo do fundo dos meus

Flores (Agostinho Fortes)


Na delicadeza de teus movimentos, força
Na transparência de teu olhar, mistério
Perco-me em teus lábios cheios, encontro
No perfume da tua carne, a fragrância da tua alma

Quando perco-me entre as ondas de nossos beijos, meu peito já não sinto
E neste beijo, sem perceber, morro afogado, morro faminto
Tempestuoso teu jeito, sereno teu íntimo
Tua pele é morena, teu vinho é tinto

Quando sinto teu corpo, falta-me pensamento
Nas flores que te deixo, não cabe o meu sentimento
Seria necessária toda a primavera
Seriam necessárias pétalas ao vento

Diabo em conflito (Agostinho Fortes)


O diabo está em conflito
Decidido a ser do bem
Acolheu o mais aflito
Salvou até um trem
 
O tinhoso também rendeu
Muitas graças ao Senhor
Fez promessa de cultivar
A mais bela rosa do amor
 
O capeta muito fez
Mas era larga a estupidez
Viu o homem se matando
Viu o homem, seu freguês
 
Resolveu então castigar
A humana insensatez
Fez miséria se espalhar
Foi diabo outra vez
 
No fundo de todo mal tem um bem
Que tem um mal também
E fica nesse vai e vem
Que tem um mal que tem um bem
Que tem um mal também ...
 
 

Fiz a sua mala (Agostinho Fortes)


Como era de costume, fiz a sua mala
Não repare no volume, não repare em nada
Fiz caber no velho couro o seu grande reinado
Acredite, dessa vez está tudo acabado

Carregue as suas costas frias e lanhadas
Pelas mãos das meretrizes que não valem nada
Leve seus beijos frouxos e de caridade
Meus dias infelizes, sua crueldade

Mas deixe o que restou da minha vaidade
Que de tanto maltratada esvaiu-se em lágrimas
Darei para o primeiro que me der vontade
Pro segundo, pro terceiro, pra toda cidade

Alô maestro (Agostinho Fortes)


Alô
Maestro, alô
Responda por favor
Não quero nada demais
Nem um amor
Nem tirar sua paz
Quero só musicar
Uma letra qualquer
Como quem faz um bem
A uma bela mulher
À míngua de nota melhor
A letra está assim, muito só
Por favor, tenha dó

Veleiro (Agostinho Fortes)


Amor, nosso amor foi um veleiro
Que muito navegou
Por tantas tempestades
Por mais de mil cidades
Por tantos sonhos se embalou

Primeiro, era céu de brigadeiro
Que depois se acinzentou
A bombordo, muita flor
Estibordo, mais amor
Dos teus olhos o mar transbordou

Mas certa vez
O vento mudou
Levando o mastro, a vela, o bom tempo e o amor
À deriva, em alto mar
Lembrei das besteiras que eu disse no altar
Mas o mau tempo insistiu
Foi difícil navegar
Por tantas tempestades
Por mais de mil cidades
Por tantos sonhos neste mar 

Verdade que a gente bem tentou
Nos pusemos a remar
Por tantas tempestades
Por mais de mil cidades
É  hora, amor, de retornar 

Segunda-feira (Agostinho Fortes)


Segunda-feira chegou
Me fez da cama cair
A vida queima lá fora
E já me arde bem aqui
Segunda-feira empurrou
Meu corpo ladeira abaixo
A ladeira logo acabou
E meu corpo caiu num riacho
O corpo quis afundar
No arbusto ribeirinho, encalhar
Quis se perder nos afluentes
Se esconder feito os duendes
Mas a correnteza carregou
Levou meu corpo pra serpente
Então a pálpebra oscilou
E o sol tocou a lente
Vale transporte, crachá e pente
E identidade pra virar gente
Viro o café nem frio, nem quente
- Amor, tô indo pro batente

Segunda-feira lembrou
São seis bocas pra comer
E uma ainda na barriga
Que tá com medo de nascer
Então pulo da cama
Pulo no trem
Não faço drama
Pulo os trilhos da Central
Pulo até o carnaval
Pulo o pulo
Pulo a fogueira
Vou pulando sem hesitar
Que a vida não é brincadeira

Segunda-feira deixou
A segunda-feira morrer
Deito ao lado do meu amor
Pra ver segunda padecer

Menina linda (Agostinho Fortes)


Menina linda que tem medo de amar
Permita-me que me aproxime, me apresente
Permita-me te conhecer, te revelar
Até quem sabe te surpreender e te casar

Há de ser bem devagar
Pois não pode o tenor calar
Perder a voz de açoite
Nem banda sair tocando
Assim, na calada da noite

Por isso deixa-me chegar
Como quem avista terra
A embarcação atracar
Hastear bandeira sem guerra
A tripulação pisar o chão
Como se beijasse a areia
Meu olhar te fustigar
Meu sangue ferver em tua veia
Quem sabe abres um sorriso
Um portão, um coração

Menina linda que tem medo de amar
Permita-me te perder
Mesmo antes de te ganhar
Mesmo antes de te esquecer

Lembrando dela (Agostinho Fortes)


Acordo já me lembrando dela
E a manhã vem como um palpite
De que não existe Afrodite
De que não haverá apetite
De que não haverá calor
Por mais forte que raia o sol
Não haverá furor
Nem mesmo no futebol

Meu amor me levou todos os amores
E eu que amava as flores
As cores, os odores
Amava o mar, amava o vento
Amava amar e o relento
Hoje acordo com um pássaro a cantar
E haja saco pra escutar
Já gritei pra vizinhança
- Vou matar a sabiá !